Em Outubro de 1970 deixei os Açores, com destino a Setúbal.
Entre outras coisas, levava na minha memória literária a imagem dum livro singelo, publicado no ano de 1963 em Ponta Delgada, numa edição apoiada pelo Instituto Cultural. Intitulava-se Passos de Viagem, era da autoria de Manuel Pereira (redução do nome Manuel Pereira Medeiros: Água Retorta-1936; Setúbal-2013). Em articulação com o título, uma capa despojada, talvez ascética mesmo, da autoria do também jovem Tomaz Borba Vieira, remetia já para uma linha de leitura, a do homo viator, do homem caminhante, e da vida lida simbolicamente como uma peregrinação. Era um livro publicado, escreverá o autor cerca de quatro décadas mais tarde, «para me manter na paixão da escrita em que vivera a juventude» (2009: 65).
Sem que, então, eu me tivesse apercebido, muita água correra nas ribeiras açorianas entre 1963 e 1970: em 1968, Manuel Pereira também deixara os Açores em busca de outros caminhos para os seus passos e quem eu encontrei em Setúbal foi já o livreiro e dinamizador cultural Manuel Medeiros que, depois de ter criado em Lisboa a livraria Nosso Tempo (1969), se instalara em Setúbal nesse ano 1970 e aí se comprometera com o projecto Culdex – Galeria de Exposição e Divulgação Cultural, que envolvia igualmente o picoense Mário Melo Pereira. Aparentemente, o poeta tinha sido arredado ou, pelo menos, subalternizado pelo livreiro.
Entretanto, o poeta Manuel Pereira já começara também a consolidar o nome literário escolhido para dar cobertura à sua escrita: Resendes Ventura, o nome que agora assina este livro As palavras que eu sou, organização, fixação de texto e apresentação de Fátima Ribeiro de Medeiros (uma tarefa que, sendo fruto de um gesto de amor, não deixa de ser também um trabalho científico rigoroso).
No seu livro Papel a Mais («papéis de um livreiro que não de um escritor»), Resendes Ventura explica a génese deste seu nome literário, que já surgira indirectamente referenciado no poema de 1968 «Resposta aos meus vizinhos e amigos» (2022: 58). Tratava-se de prestar uma homenagem ao avô materno, Manuel José de Resendes, e ao avô paterno, Manuel Ventura de Medeiros – este em boa parte responsável pelo rumo literário do neto: na gaveta da sua mercearia tinha… um Dicionário e uma Bíblia. E deixou um caderno de Versos Religiosos / Por / Manuel Ventura de Medeiros / de Água Retorta / S. Miguel- Açores , editado em 2020, com organização, revisão e actualização de Fátima Ribeiros de Medeiros, que também assina uma introdução.
A construção desse nome literário constitui um gesto de natureza familiar, mas é ao mesmo tempo a manifestação da vinculação afectiva ao seu espaço geográfico, a Água Retorta, expressa por diversas vezes e sob formas poéticas variadas.
Mas é principalmente sobre o Manuel Medeiros livreiro que eu me pronunciarei agora.
A Culdex talvez tenha sido uma espécie de ensaio para a Culsete e resultava de uma reflexão de Manuel Medeiros sobre o papel das (pequenas) livrarias e sobre as condições da sua sobrevivência e sobre a importância da «animação de leitura» em fábricas e noutros espaços que viriam a ser também as escolas, por exemplo.
Da actividade da Culdex no seu espaço interior próprio, há dois momentos que marcaram a minha estadia de quase dez meses em Setúbal, interrompida subitamente pela tropa.
Um deles, a homenagem a Sebastião da Gama: um documentário audiovisual luminoso como a Serra da Arrábida, que arrancava com a entrada solene da Tocata e fuga em ré menor (BWV 565) de Bach; de cada vez que a oiço recupero a imagem de uma sala cheia de pessoas reunidas por causa de um poeta.
O outro momento teve um carácter ainda mais impressivo, pois tratou-se de um encontro com a poetisa Sophia de Mello Breyner (26 de Fevereiro de 1971), a pretexto da sua Antologia, saída em segunda edição no ano anterior.
Um e outro eram práticas pouco (ou nada) habituais no universo literário açoriano que me era mais próximo e representavam, principalmente a segunda, um outro modo de estabelecer contacto com a literatura, fora do espaço rígido do texto e da página.
E como estamos em tempo de evocações, importa dizer, em nome da justiça, que foi Manuel Medeiros o principal responsável pela edição do meu primeiro livro de poemas, Raiz de Mágoa, impresso nas oficinas da Culdex na Primavera de 1972 quando no meu horizonte já se vislumbrava a viagem para África e para as suas guerras.
Pela duração e pela amplitude do seu trabalho em prol da leitura, seria a Culsete a tornar-se a livraria de Setúbal.
Fundada por Fátima Ribeiro de Medeiros e Manuel Medeiros em Julho de 1973, a Culsete tornou-se, ao longo de mais de 40 anos, um ponto de referência cultural na cidade, pelo dinamismo e diversidade que soube imprimir à sua actividade, pela proximidade e disponibilidade mantida para com os seus clientes e frequentadores; promovendo debates e palestras, convidando escritores como José Saramago e Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues e João de Melo, Manuel da Fonseca e Maria Teresa Horta (vão apenas seis, em representação daqueles que quase preenchem a página 46 de Papel a Mais).
E com o apoio e a colaboração inicial da escritora Maria Alberta Menéres, a Culsete expandiu a sua intervenção para as escolas do distrito, levando os livros aonde eles devem estar desde sempre como coisa natural, e convocando a participação de escritores do campo infanto-juvenil (a lista deles é extensa, quase outra página, a 43, de Papel a Mais)
De toda essa actividade da Culsete voltaria eu a beneficiar por duas vezes, quando regressei a Setúbal para apresentar livros meus na Culsete (Que paisagem apagarás, em 2010; África frente e verso, em 2012,) ambas naquela envolvência familiar que a Fátima e o Manuel Medeiros davam sempre às sessões na livraria, ainda mais no meu caso, uma espécie de regresso do filho pródigo, mas já com família e mais livros (coisa bem diferente da Bíblia).
Com toda a sua actividade de livreiro, onde fica, afinal o poeta?
No seu livro Papel a Mais Resendes Ventura confessa a determinado momento que a sua actividade de livreiro e mediador de leitura fez com a poesia se tornasse «papel a mais» na sua vida. É uma afirmação que este livro, As palavras que eu sou, em certo sentido desmente e, num outro sentido, acaba por confirmar também. Isto é, o poeta (e também editor) que descuidou a própria edição continuou na sombra do livreiro a escrever e a escrever e a construir uma voz poética singular, como aqui agora se confirma.
Resta-nos, pois, esperar que As palavras que eu sou traga de novo ao contacto de um público mais vasto o conhecimento de um poeta que não precisou de estabelecer uma exclusão absoluta – ou a Arrábida ou Água Retorta –, mas soube conviver com ambas e com o mundo, o da literatura e o outro.
Urbano Bettencourt *