As recentes declarações do Diretor-Geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais, reconhecendo que o Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada “é claramente um sítio em que ninguém devia estar preso”, devia mobilizar a opinião pública em geral e as instituições sociais e governamentais em particular para que o Governo da República tomasse medidas imediatas para minimizar tão grave situação.
Muito têm dito e reclamado as mais diversas entidades judiciais, os deputados à Assembleia da República e as entidades regionais. No entanto, até agora, nem a primeira pedra do futuro edifício foi ainda lançada.
A sobrelotação do Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada, nos últimos anos, tem merecido públicos protestos, por atentar contra os direitos humanos, mas essas denuncias não tem passado daí.
Com capacidade para 141 lugares, o edifício construído em 1856, inicialmente designado por Penitenciária de Ponta Delgada ou Cadeia da Boa Nova, tem uma lotação largamente ultrapassada por reclusos preventivos à ordem dos Tribunais das Comarcas de Nordeste, Ponta Delgada, Povoação, Ribeira Grande, Vila Franca do Campo e Vila do Porto, por indivíduos condenados, residentes nas Ilhas de São Miguel e de Santa Maria e ainda por originários de famílias emigradas dos Açores, que foram alvo de medida de repatriamento dos países em que residiam.
Numa visita efetuada em 4 maio de 2016, o Provedor de Justiça descreve num relatório muito pormenorizado 1 que havia naquele dia 191 reclusos colocados em alojamentos coletivos/ camaratas, em beliches que subiam e quase tocavam no teto, à medida das necessidades.
Esta situação mais uma vez criticada pelo Diretor-Geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais não tem qualquer justificação aceitável, nem mesmo o atraso da construção da nova cadeia devido a alegados “problemas resultantes da escolha do terreno e também de questões legislativas pendentes, que impedem as obras”.
Quando se trata de atentados prolongados aos direitos humanos, tudo tem de ser feito para não prolongar essas situações, recorrendo a outras instalações, que as há, desde que minimamente adaptadas para o efeito.
Ainda recentemente, registou-se uma tentativa de fuga de vários reclusos do Estabelecimento Prisional, considerado de alta segurança, mas nem mesmo isso demoveu o Estado a tomar a atitude há muito reclamada.
Em causa está a salvaguarda de direitos fundamentais de indivíduos à guarda da Justiça que convivem com dependências de vária ordem, o que pode impedir a sua recuperação e reabilitação social.
Não sendo entendido nesta matéria, procurei informar-me sobre se a ONU tinha alguma legislação neste sentido.
Encontrei as “Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos”, também designadas por Regras de Nelson Mandela, aprovadas pela resolução 70/175 da Assembleia-Geral, anexo, adotadas a 17 de dezembro de 2015.2
O documento tem mais de uma centena de disposições todas elas muito claras:
1. As pessoas detidas preventivamente devem ser mantidas separadas dos reclusos condenados.
2.Os jovens preventivamente devem ser mantidos separados dos adultos e ser, em princípio, detidos em estabelecimentos prisionais separados. (regra112)
As pessoas detidas preventivamente devem dormir sozinhas em locais separados, sob reserva de diferente costume local relativo ao clima. (regra 113)
Quanto aos reclusos condenados: “devem ser separados pelo seu passado criminal ou pela sua personalidade, [para que não] possam vir a exercer uma influência negativa sobre os outros reclusos (regra 93).
Neste sentido a ONU defende que se deve repartir os reclusos por grupos, tendo em vista facilitar o seu tratamento para a sua reinserção social. Isto obriga a que os estabelecimentos sejam separados em secções distintas para o tratamento das diferentes categorias de reclusos.
É fácil verificar que o Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada, no fundamental, não cumpre as “Regras de Nelson Mandela”.
Cabe, pois aos cidadãos e aos agentes políticos e judiciários acionarem os mecanismos capazes de demover as entidades responsáveis a agir depressa e em conformidade, pois o problema é demasiado grave para não ser solucionado.
Em maio de 2022 a A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados visitou o estabelecimento prisional de Ponta Delgada e denunciou, em documento publicado em dezembro passado, a degradação das instalações, o excedente do limite da capacidade e o número significativo de presos preventivos.
Há dias vem o Diretor-Geral numa visita em tudo semelhante às efetuadas às antigas colónias e às ilhas adjacentes, reafirmar o que já vários disseram, sem ninguém admitir culpas no cartório.
Esta dependência dos Açores das competências soberanas da República é a prova provada de que o colonialismo mantém-se vivo e atuante, como sucedeu durante décadas nas chamadas Províncias Ultramarinas. A diferença é que, então, vivíamos em ditadura, cerceados nos direitos fundamentais.
Em democracia, não se admitem os atropelos à dignidade das pessoas, já de si fragilizadas por erros pessoais e coletivos de um passado que, segundo o Papa afirmou em 2019, não deve “nunca privar o presos do direito de recomeçar”. Numa receção aos membros da Polícia Penitenciária italiana, Francisco acrescentou: “Cabe a toda a sociedade alimentá-lo, fazer de forma que a penalidade não comprometa o direito à esperança, que sejam garantidas perspetivas de reconciliação e de reintegração.”
O escândalo do Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada é tão grave como a falta de habitação condigna, a pobreza, a falta de acesso à educação e à saúde, porque impede não só a recuperação e integração social de seres humanos, como lesa as famílias e a segurança da sociedade.
Está na hora de os micaelenses se mobilizarem, em força, a começar pelas entidades políticas, religiosas e outras que lutam pelos direitos humanos, manifestando o seu repúdio pela inação e indiferença de quem de direito. Na rua, em abaixo-assinados, nas redes sociais e outras formas que tornem eficaz o seu protesto. Para não pactuamos com a inoperância e a irresponsabilidade que atingem a fragilidade de homens e mulheres que, encarcerados numa masmorra sem (re)missão, sofrem por erros seus e má fortuna, parafraseando o Poeta.
1 http://www.provedor-jus.pt/documentos/02_08_2016_Estabelecimento_Prisional_de_Ponta_Delgada.pdf
2 https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/Nelson_Mandela_Rules-P-ebook.pdf
José Gabriel Ávila*
*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com