Houve um tempo — que infelizmente parece ter acabado — em que directores de instituições culturais davam colaboração crítica à imprensa da sua cidade, região ou país, permitindo não apenas que fossem melhor conhecidos mas também que o seu exemplo de primeira linha impulsionasse uma vida comunitária mais esclarecida e inclusiva. Que grandes figuras eles eram... O serviço público que o cargo já consubstanciava transbordava, assim e ainda, para páginas de jornais em que a actualidade literária e artística era regularmente comentada com o crédito da sua autoridade e prestígio social. Na revista Ocidente de Álvaro Pinto, e não só, Diogo de Macedo (1889-1959) foi talvez o caso mais extraordinário e longevo. Hoje, ao contrário, a larga maioria deles não está para isso, e mesmo quando directamente interpelados por este ou aquele motivo, incómodo ou não, há logo quem prefira o silêncio como recurso manhoso senão covarde para se escusar a esclarecimentos públicos a que se diria estar obrigado, ao menos em defesa do seu sempre tão invocado «bom nome», e ao mais por iniludível dever de transparência institucional. Essa degeneração cívica e política — não lhe encontro outro nome — terá efeitos a prazo sobre a qualidade da vida colectiva, o prestígio das instituições envolvidas e a necessária adesão das pessoas comuns a elas. Mas a quem importa isto, dirão, se os problemas de hoje são tantos e tudo-isso?!
A cada semana de pesquisa que mais me aproxima do inventário integral da colaboração de João Afonso na imprensa da sua terra natal, mais me convenço da importância da intervenção jornalística do antigo director da Biblioteca Pública de Angra do Heroísmo, que durou décadas consecutivas e merece ser enfeixada numa publicação que a exponha à curiosidade e benefício das gerações actuais e futuras, e ao mesmo tempo faça plena justiça ao esforço pessoal de tantas horas extra também consagradas à causa pública. E se esta minha série de artigos sobre Afonso visa dar a ver a constelação dos seus interesses e preocupações, esta crítica ao mais famoso romance de José Dias de Melo (1925-2008) deve desde já ser enxertada ao seu extenso ciclo de trabalhos de diverso tipo dedicados à baleação açoriana, de que na década de 1960 ele era já o mais claro precursor nestas ilhas (tema ao qual voltarei quando me sentir capacitado para isso). Não foi, é evidente, a partir do nada que Afonso ilustrou este seu artigo com um pormenor do famoso quadro em quatro partes do museu baleeiro de New Bedford The Grand Panorama of a Whaling Voyage ‘Round the World de Benjamin Russell e Caleb Purrington (259 x 39 cm), e a legenda «A ilha do Pico tal como a viu em 1843 um baleeiro americano».
Pedras Negras foi publicado em finais de 1964 pela Portugália, reeditado em 1985 pela Vega e em 2003 pela Salamandra, de Bruno da Ponte — edição valorizada pelo prefácio de Luiz Fagundes Duarte e que serve de base à mais recente, a da VerAçor, datada de 2008.
O entusiasmo de João Afonso por esta narrativa do escritor picaroto antecipa o estatuto de «clássico» que ela haveria de ter na literatura dos Açores, mas não foi capaz de prever a sua tardia e ainda escassa internacionalização. Dark Stones (Bellis Azorica) saiu nos Estados Unidos da América em 1988, numa tradução de Gregory McNab para a Gávea-Brown, dirigida por Onésimo Teotónio Almeida, e retomada o ano passado pela Tagus Press, numa nova colecção que também já verteu para inglês As Ilhas Desconhecidas. Notas e paisagens de Raul Brandão. Foi também publicado no Japão, em 2005, pela Sairyusha, de Tóquio. Muito mais pode e deve ser feito. Fica-se, portanto, à espera que os novos e muito sensatos apoios do actual Governo Regional à internacionalização da literatura açórica sejam aplicados à sua tradução para francês, italiano, espanhol, islandês (!) e... Mas também aqui falta claramente aos Açores a diplomacia cultural incisiva e dinâmica que o país, de facto, não tem — e da qual, enquanto região autónoma, jamais deveria depender.
Vasco Rosa
«Pedras Negras», o romance de Dias de Melo
Tanto ou mais ainda do que o produto literário desta obra — produto que nos pareceu perfeitamente conseguido e muito bem arranjado — satisfez-nos nas Pedras Negras, a par de algumas páginas excelentemente transpostas da vida real para a prosa, a descrição física desta ilha única que é, entre as várias ilhas dos Açores, a do Pico.
Lemos de uma assentada as Pedras Negras de Dias de Melo. São treze cadernos escassos, in 8.º pequeno. Edição da Portugália, de Lisboa. Trata-se, sobretudo, de uma obra em que o autor, libertando-se, passou a ser o artista literário (que ainda não era em pleno domínio do seu talento), ficando o romancista que poderá vir a ser, um romancista picoense, melhor: o romancista da ilha do Pico.
Bem distante se encontra o autor do seu anterior livro, Mar Rubro (Lisboa, Orion, 1958 [2.ª ed. Lisboa: Ilhas, 1980, prefácio de João de Melo]). E para explicar o entusiasmo por estas Pedras Negras, deve-se talvez mencionar uma predisposição francamente pouco optimista para o receber, por via do livro ou livros anteriores.
Atingindo o máximo de poder literário nos primeiros capítulos, fácil há-de ser ao autor conquistar a admiração dos leitores. O livro pode realmente ser lido de uma assentada em permanente interesse. Mas é no capítulo da caçada à baleia, entre as páginas 40 e 55, que a obra chega à altura digna de antologia, apesar de um senão: o do tempo psicológico (ninguém crê, pelo que foi escrito, que passassem oito horas na caçada; aliás, a dimensão tempo escapou ainda a Dias de Melo em todo o romance).
Em pintura dramática, de colorido admirável quer no descritivo da cena como na dotação anímica das personagens, sucede-se o quadro da caçada. Num crescendo de intensidade, em que a literatura, pela Arte de um doseamento verbal compacto e interseccionado, se faz sem o recurso à complicação, Dias de Melo em três linhas apenas precipita, num choque o drama em quadro de tragédia. Como um clarão de relâmpago que cega ou fulmina, o grito lancinante da morte de João Peixe-Rei constitui, no género, uma das páginas mais duras da nossa literatura de mar.
Íamos a dizer que a descrição física da ilha do Pico sobrelevava tantas e tantas páginas deste pequeno grande romance. Efectivamente, se Raul Brandão nos ofereceu como ninguém as cores da ilha do Pico e das nossas ilhas todas, este Dias de Melo desenha para nós açorianos e para a literatura portuguesa, com esta obra — com esta! —, o quadro do Pico de muito do que a ilha foi, é e há-de ser: o Ano do Fogo, o Ano da Fome; a pedra negra por toda a parte («vala comum de cascalho e rochedo», p. 26). Só não nos deu o retrato inteiro da Ilha na visão já surpreendida nas Letras e na Cartografia no século XVI, com Frutuoso e com Luís Teixeira. Todavia, são magistrais certas pinceladas como esta que faz parte da cor íntegra da terra: «o céu acaçapar-se sobre a ilha num pasmo negro e pesado como chumbo» (p. 24). Como estoutra do espectáculo das «cinzas que continuavam suspensas cegando a luz» (p. 25). E esta também da certeza que acompanha quem por cá vive: «o fogo não fez promessa de nunca mais rebentar» (p. 28).
Pedras Negras não são apenas o romance da baleia, nem do fogo, nem da fome, nem da emigração, nem de alegrias e de penares, nem da vida toda de homens e mulheres de várias têmperas e de carácter vário. São, sim, o romance disto tudo, no seu conjunto. E romance breve, conciso, pronto, entregue pelo talento que só podia ser de um picaroto talentoso na literatura. Se não fora a necessidade duma confirmação futura, dir-se-ia que Dias de Melo é já a primeira grande figura literária do Pico. Não o insinuamos como vaticínio. Afirmamo-lo no conhecimento das melhores páginas literárias insulares.
Decerto Nemésio é um caso diverso, em outra dimensão. Mas raro se encontra um escritor tão igual a si mesmo como Dias de Melo nesta obra (repetimos: nesta obra).
Dir-nos-ão que todo o assunto que Dias de Melo explora já foi tratado. Dir-nos-ão que ele se baseia (incontroversamente) em factos sabidos. Dir-nos-ão que ele se baseia em pessoas cuja existência se poderia apontar a dedo. Isso nada tem para o caso. Melhor ainda: tem muito para o caso se visto no plano literário. Íamos a escrever que tem tudo para tanto.
As páginas da vida do emigrante Francisco Marroco, do seu regresso e da sua permanência até à morte na ilha de onde saíra de salto (há semelhança flagrante entre a cena da fuga com a de Manuel Greaves) envolvem o leitor num clima de interesse permanente de verdade, de uma verdade palpitantemente dinâmica que faz criar amizade a um Miguel Parreira, da Terceira; o asco a um Bóia (como tantos); o nojo e desprezo a um frio Albano Passarinho (de São Jorge). Impõe-se essa verdade que, aliás, não diz respeito apenas a pessoas mas a toda uma realidade permanente nas relações sociais dentro da freguesia, da ilha e para lá do Canal, verdade que se faz luz até para o Banco (de Nossa Senhora da Vida) que se constituiu (sabem poucos de que maneira em relação a todos) e que faliria como bem vieram a saber todos porque a todos tocou por casa...
Sob linhas tão cruzadas, mas cuja trama se fica a conhecer, fio a fio, nas suas cores e na sua espessura, esta obra de Dias de Melo torna-se, sem favor algum, um «clássico» da literatura ilhoa e enriquece indubitavelmente a literatura portuguesa.
Aqui está, como um livro que aparentemente parece obra simples e realizada em plena facilidade foi — com certeza — uma complexa tarefa. Atingiu, em determinados ângulos, o esplendor da Arte. E muito contribuiu para tanto, não apenas o senso literário do autor, mas também — íamos a escrever sobretudo — o senso da verdade.
Para além destas palavras de crítica, poderíamos ajuntar aquelas normais expressões adjectivadas de parabéns. Este livro não precisa disso. O autor atingiu o seu objectivo com perfeito e consciente domínio.
Só acrescentaremos uma linha mais, formulando uma pergunta: ter-se-á Dias de Melo dado conta de que escreveu a primeira tragédia da literatura açoriana, uma tragédia em prosa e em romance muito embora?
João Afonso
Diário Insular, Angra do Heroísmo,
4 de Fevereiro de 1965, pp. 2, 3