O clima de festa toma conta de Floripa a partir do Domingo de Pentecoste. Isso mesmo, começam as festas do Divino Espírito Santo por todo o município de Florianópolis até 28 de setembro quando do encerramento das festividades. Desde a abertura do Ciclo do Divino no dia 13 de Maio a azáfama é imensa nas treze localidades insulares, onde a festa se realiza com grande expressão cultural e religiosa: no centro de Florianópolis, Ribeirão da Ilha, Monte Verde, Trindade, Rio Tavares, Prainha, Pântano do Sul, Lagoa da Conceição, Barra da Lagoa, Campeche, Rio Vermelho, Santo Antônio de Lisboa, Canasvieiras e uma no Estreito, parte continental. Na Capela do Divino Espírito Santo a abertura oficial dos festejos aconteceu na quinta-feira 25 de maio com a palavra do Provedor Paulo do Vale Pereira e do Casal Festeiro Marcello e Judite Petrelli que exortaram nas suas falas a relevância histórica e social da Irmandade e destacaram a programação da 247ª Festa e do aniversário de 250 anos da IDES. É digno de louvor a trajetória de gerações de Irmãos que mantém vivos os ideais e o compromisso firmado no passado em nome do Espírito Santo. Os meios de comunicação são pródigos em divulgar a tradicional festividade, dando conta de um legado construído desde a vinda dos pioneiros açorianos há 275 anos. Sobretudo, o Grupo ND TV tem sido um grande propagador de toda esta manifestação religiosa e cultural. Uma espiadela ao tempo pretérito e encontramos na imprensa de Desterro inúmeros registros, como na edição de 23 de maio de 1858 do jornal Santelmo que anunciava as novenas do Espírito Santo e sua próxima Festa promovida pela IDES. O diretor J.J.Lopes no editorial descreveu a grandeza e toda pompa do evento: “ E não podia deixar de suceder assim, porque o Imperador além de ser homem que tem patacos grossos, tem bom gosto; é brioso e nada mesquinho; portanto, teremos moscas por cordas e mosquitos por arame.” O viajante inglês, pastor Charles Stewart, em maio de 1853 registrou maravilhado a Festa do Divino Espírito Santo em Desterro: o entusiasmo dos fiéis cantando a novena, a chegada da bandeira vermelha com a pomba branca estampada, a cantoria dos foliões, os leilões de prendas, a estridente banda musical, o foguetório, a abertura do Império e a coroação do Menino Imperador e a Irmandade com capas de seda vermelha. Em seu minucioso relato constante da sua obra Brasil andla Plata (N.York,1853) comenta em tom de picardia: “sob o blasfematório título de Imperador do Espírito Santo, ele preside em burlesca majestade esta festa e é observado com especial honradez por todo povo durante sua permanência no trono.” (Gerlach,G.2010:216).
Poderia continuar a citar jornais de Desterro e da atualidade, autores como Virgílio Várzea, Cruz e Sousa, Lacerda Coutinho, Horácio Nunes Pires, Bento Águido Vieira, Henrique Fontes, Osvaldo Cabral que se debruçaram em suas narrativas sobre as tradições do Espírito Santo, um legado que fez os caminhos do mar e aqui permanece mais vivo do que nunca. Dos séculos XX e XXI encontramos a secular tradição nas novelas de Othon d`Eça, no romance “Marcelino” de Godofredo Neto, nas colunas de Moacir Benvenutti, Aldírio Simões, Juliana Wosgraus, e nas crônicas insuperáveis de Sérgio da Costa Ramos que, tal qual a Bandeira do Divino, segue sempre em frente como verdadeiro arauto da devoção secular e da nossa identidade cultural açoriana.
Anos atrás, na minha faina árdua e apaixonante sobre a herança cultural dos nossos açorianos do século XVIII e, sobretudo, correndo atrás das Festas do Espírito Santo (aliás, ainda sonho em assistir as Grandes Festas do Espírito Santo da Nova Inglaterra de que ouço tanto, desde a época do saudoso Heitor Sousa, seu fundador) pelas nove Ilhas dos Açores enviei um e-mail ao escritor açoriano, colega e estimado amigo Onésimo Teotónio Almeida fazendo uma série de considerações e perguntas. Ele com a paciência maior do que a de Jó respondeu-me: “Lélia, tens aí um bom exemplo, a festa do Espírito Santo, para confirmares que a cultura é transportada, consciente ou inconscientemente, nos hábitos e costumes das pessoas e que os adultos, ao emigrarem, já os têm estruturados e interiorizados. Levam tudo isso debaixo da pele.”
Não preciso acrescentar mais nada e retorno ao presente, a Festa do Espírito Santo que decorreu na freguesia do Ribeirão da Ilha, no Monte Verde e na região central da capital de 25 a 28 de maio.A programação do tempo pretérito acima lembrada pouco difere da programação da Festa do Espírito Santo de Florianópolis de 2023, no aniversário 250 anos da Irmandade do Espírito Santo/IDESinstituída em 10/6/1773 e da realização da primeira Festa do Espírito Santo em 1776. A primeira coroação só aconteceu em 1806, tendo como Imperador o Capitão Manoel Francisco da Costa.
Ao adentrar na Capela do Espírito Santo no domingo de Pentecoste, dia 28 de maio, lindamente ornamentada com flores, bandeiras, estandartes e as alfaias do Espírito Santo, ao som da canção popular “A Bandeira do Divino” de Ivan Lins, fui tomada de grande emoção e não contive as lágrimas que bailavam toldando a visão. Enquanto seguia na procissão da IDES lembrei da Festa de 26 de maio de 1996, quando meu marido Sebastião Ivan Nunes e eu fomos o Casal Festeiro daquele ano e assumimos o compromisso de resgatar os folguedos populares, de trazer as barraquinhas e bandas de volta à Praça Getúlio Vargas que há treze anos não acontecia. A Irmandade desde 1983 em sua missão de salvaguardar a devoção e a festa do orago manteve o disposto no seu Termo de Compromisso – a celebração dos atos religiosos, a procissão do cortejo e coroação, a distribuição dos pães de promessa e os pãezinhos dos dons do Espírito Santo. Foi surpreendente a adesão da população de Florianópolis a tradicional festa que sempre representou parte significativa da nossa memória social e cultural.
O cronista Sérgio da Costa Ramos em sua coluna no Diário Catarinense, na edição de 28 de maio de 1996, na deliciosa crônica “Barraquinha do Divino” assim expressou a sua satisfação pela tradição revivida: “Toda essa festa acaba de ser revivida, o que é digno de sinceroregozijo. Ressuscitaram, também, as Barraquinhas do Divino, forma adaptada do ‘leilão de prendas’ de que nos fala a tradição. Aleluia. As ‘barraquinhas’do Divino, ali, na Praça Getúlio Vargas, junto à Igrejinha do Espírito Santo, fazem parte do meu mais caro e prezado pout-pourri de lembranças infanto-juvenis. (...)”
A Festa do Divino de 2023 da IDES chegou com a roupagem dos novos tempos e a pomba do Espírito Santo na arte contemporânea do artista Luciano Martins enaltece a renovação da fé, do amor, da esperança. A comunidade mais uma vez respondeu ao convite da IDES e do Casal Festeiro e sua participação na “Divina Festa – A Festa da Família” foi imensa fortalecendo a tradição e reconhecendo a relevância da Irmandade do Espírito Santo, uma instituição modelar, que tem por missão a educação global do ser humano atuando na assistência e formação de crianças e adolescentes. Desenvolve quatro grandes programas, divididos de acordo com a idade e atividades socio pedagógicas: Lar São Vicente de Paulo (crianças de 0 a 6 anos que tiveram seus direitos violados); Centro de Educação Infantil Girassol; EducArte; Formação Aprendiz – aprendizado, qualificação profissional e inserção no mercado de trabalho. A IDES de forma direta assiste uma média diária de oitocentas crianças e adolescentes.
Afirmo, com absoluta convicção e fé, que na missa solene do domingo de Pentecoste, no momento da coroação do menino Imperador, tendo por testemunha a comunidade de Florianópolis e a IDES, o Casal Festeiro,Marcello e Judite Petrelli, emocionado sentiu a força viva da tradição açoriana de 275 anos ao renovar a promessa da Rainha Santa Isabel feita há 702 anos, em Alenquer. Uma promessa que se cumpre e se renova na geografia do mundo açoriano a cada nova coroação do Espírito Santo. Convido-os neste maio iluminado de 2023 a cantarmos num coro infinito de vozes:
Deixa a bandeira passar
deixa a bandeira entrar
é o Espírito Santo, chegando, chegando
pra te abençoar.
Lélia Pereira Nunes*
*Curadora do Projeto Viva Açores, Conhecer é Viver!