Diário dos Açores

Salvem, antes da hecatombe que se anuncia, o vulcãozinho lávico mais impressivo dos Açores

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Ao ler as notícias dos jornais da ilha do Pico, sobre as intervenções que se pretendem fazer no Piquinho, fiquei extremamente preocupada. Mais um atentado irreparável a um sítio geológico de excelência, cuja dimensão se pode antever pelo empilhamento dos sacos de cimento que repousam na base deste maravilhoso pequeno cone, único, que se eleva a partir das lavas do lago de lava, agora petrificado, que encheu a cratera do nosso imponente estratovulcão da ilha do Pico.
Perante esta constatação seria impossível calar e, com o meu silêncio, ser cúmplice deste atentado ao “Património Natural – Património Geológico” da minha ilha.
Património é sempre um legado, que poderemos desfrutar hoje e que temos o dever de transmitir incólume, tanto quanto possível, às gerações futuras. Os nossos patrimónios culturais e naturais são fontes insubstituíveis de vida e de inspiração. O património geológico engloba, entre vários aspectos, por exemplo, as características geológicas, as formas de relevo, os depósitos minerais, as fontes hidrotermais, que fazem parte de uma herança recebida à nascença, que podemos beneficiar durante a nossa vida, mas que envolve uma enorme responsabilidade de preservar inalterada da intervenção humana (já que não podemos controlar os fenómenos geodinâmicos, nem os meteorológicos). Esses locais, geralmente, têm grande potencial para estudos científicos, podendo, e devendo, ser utilizados como “salas de aula ao ar livre”, contribuindo, assim, para que num contexto de diversão e/ou valorização dos conhecimentos, se aumente a compreensão dos fenómenos naturais, responsáveis pela formação de cada um dos patrimónios em observação. Se tal desiderato for alcançado, indubitavelmente, passarão a ser respeitados religiosamente e melhor preservados. O reconhecimento das características desse património geológico é fundamental para a compreensão dos processos profundos e superficiais envolvidos na sua formação, permitindo, consequentemente, a reconstrução da história geológica passada e recente.
Sendo assim, cabe-me a responsabilidade moral e científica de me reportar, ao caso específico da Montanha do Pico, o estratovulcão melhor preservado dos Açores, que se foi paulatinamente edificando ao longo de cerca de 240.000 anos. Durante a evolução do estratovulcão do Pico / Montanha do Pico, pelo menos três paroxismos ocorreram, cujas marcas estão bem patentes na morfologia da Montanha. Assim, é perfeitamente possível visualizar as três últimas importantes etapas de crescimento deste vulcão: (1) uma primeira cratera de colapso aos 2050 m, formada quando a altitude da montanha era ligeiramente superior aos 2050m; (2) a cratera principal do estratovulcão aos 2250 m, que se originou depois do vulcão atingir uma altitude superior aos 2250 m; (3) um lago de lava, preenchendo esta cratera, e um cone lávico vulcânico com uma altura da ordem dos 120m, encimado por uma pequena cratera, de onde foram emitidas lavas pahoehoe, encordoadas, que se espraiam, deambulando, construindo estruturas de uma beleza extraordinária – driblets, e (4) uma sequências de “bocas/vents”, que se alinham numa fissura eruptiva e se originaram durante a última erupção ocorrida no topo da Montanha.
Esta fissura, de onde foram expelidas bagacinas /lapilli* e emplastros lávicos (spatters*), tem uma orientação N115ºW e afecta o Piquinho, as paredes da cratera principal e um pequeno sector da vertente do estratovulcão (Fig. 1).
Todas estas estruturas vulcânicas muito recentes, em termos geológicos são extremamente frágeis e, por essa razão, sentimos o dever moral de alertar para não sermos os “carrascos” de um património insubstituível.
Enquanto o património edificado poderá, em alguns casos, ser recuperado, o respeitante à Natureza será para sempre fatal, se sobre ele recair qualquer intervenção mal concebida, O ambiente deve ser avaliado, por quem tem as competências para o fazer, para dotar os decisores das informações necessárias para que de uma forma consciente possam contribuir para a preservação de todos os locais de reconhecido interesse científico, e, neste contexto, as gerações vindouras possam usufruir dos mesmos.
Com a pressão crescente sobre as autoridades mundiais relativamente à protecção dos locais do património mundial, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) introduziu a Convenção do Património Mundial em 1972. O objectivo principal desta Convenção é proteger os recursos naturais e culturais do mundo. A Natureza é a coisa mais preciosa que nós, seres humanos, temos em comum, e, por isso, é imperioso preservá-la. O Património Natural, de uma forma simplista, plasma-se nas particularidades geológicas, esculpidas no ambiente que nos rodeia e envolve. Tal dádiva auferida pela humanidade nunca deve ser subestimada pela ganância do lucro fácil do turismo.
A conservação da natureza é extremamente importante. Para que a nossa geração futura possa testemunhar a beleza cénica que a natureza nos proporciona, torna-se nosso dever protegê-la. O facto de a natureza criar tais obras-primas, sem que um único ser humano a conspurque, é, em si, um sonho maravilhoso.
As reflexões que se foram desenvolvendo ao longo deste texto, transportam-nos para as recentes estratégias governamentais, delineadas pelo Senhor Secretário do Ambiente no sentido de resolver problemas da Montanha do Pico, e que se resumem (baseado nas notícias dos jornais) (1) à construção de uma “muralha/muro”, designada por banquetas de muro (?) na base do Piquinho, com a finalidade de suportar deslizamentos, e  (2) à colocação de um novo marco geodésico e de uma rosa dos ventos (?) na cratera deste pequeno cone lávico.
A degradação tão evidente, que já se nota ao nível da cratera principal, do lago de lava e, sobretudo do Piquinho, decorrente da carga excessiva de visitantes na Montanha, leva-me, mais uma vez, numa atitude de responsabilidade, a propor, a quem de direito, algumas medidas não invasivas que, no meu entender, me parecem poder contribuir para melhor preservar o que resta deste nosso monumento vulcânico.
A saber:
1º. Iniciar a subida na Casa da Montanha, como no presente julgo ser sempre feita, somente depois de ser mostrado um curto, mas bem estruturado e documentado vídeo, que informe sobre a história vulcânica da Montanha, simulando a subida do Piquinho, dando ênfase a todas as estruturas vulcânicas e paisagísticas que se podem observar.
2º Terminar a subida no bordo da cratera principal, que poderá ser parcialmente percorrida, para melhor visualização dos aspectos vulcânicos que, tal como na ascensão do Piquinho, se podem desfrutar (Fig.2).
Quando está em causa um património vulcânico tão frágil, não é lícito ceder a pressões que, de antemão, sabemos irão contribuir para a degradação de um bem comum. Esta é a praxis de um mundo evoluído e consciente. Guardar muito bem o nosso tesouro. Não é porque alguns pretendem inscrever no seu livro guinness, que estiveram no ponto mais alto de Portugal, que todos os outros tenham que assistir ao esboroar de uma riqueza geológica única.
Por favor não “encurralem” o Piquinho, nem abarrotem a sua pequena cratera com “Rosa dos Ventos”, não persistam numa prática de destruição das suas estruturas vulcânicas fabulosas pisoteando-as. Deixem a Natureza “escrever” a sua própria história, intervindo, quando o tiver que ser, com a delicadeza e a consciência técnico-científica imprescindíveis.

Zilda Melo França*

* Vulcanóloga

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