“Em muitos discursos parece que os humanos, os animais e as plantas têm todos o mesmo valor e que o uso do conceito de pessoase deve alargar para lá do homo sapiens sapiens.”
Hoje não há discurso político, noticiário ou debate cultural que não tenha referências à ecologia. Sobre este tema surgem, por vezes, afirmações estranhas, ou pelo menos difíceis de compreender, como a de que os animais têm direitos, de que pelo simples facto de existir o ser humano causa estragos na natureza, afirmação às vezes seguida de considerações que parecem pretender inferir que o ideal é nada fazermos, ou mesmo não existirmos para bem do ambiente. Em muitos discursos parece que os humanos, os animais e as plantas têm todos o mesmo valor e que o uso do conceito de pessoas e deve alargar para lá do homo sapiens sapiens.
Uma das dificuldades com que nos confrontamos ao ouvir tais afirmações é a da sua falta de clareza; os diversos intervenientes usam os mesmos termos mas com sentidos diversos, de modo que é difícil compreender as mensagens e ver o seu alcance, descobrir os seus contrastes e contradições e fazer uma avaliação rigorosa da sua razoabilidade, ou da falta dela. Mas, apesar destas dificuldades, esses discursos, debates e chamadas de atenção sobre a problemática ecológica acertam num ponto que me parece indiscutível: a humanidade está hoje confrontada com um problema que tem de ser encarado de frente: temos que cuidar da casa comum, a Terra. Não podemos deixar de viver, mas não podemos continuar a viver como vivemos hoje.
Para enfrentar a problemática ecológica é necessário que nos entendamos, a começar por compreendermos as diversas vozes do espaço público. Para nos ajudar neste primeiro passo, há que recorrer, por exemplo, a literatura que nos informe. Foi o que encontrei num excelente livro que acabo de ler: Ética de la Ecologia Integral [Barcelona: Herder Editorial, 2021, 162 páginas], de José Sols, livro que, em meu entender, valia a pena traduzir para português.
No primeiro capítulo, o autor historia o despertar da problemática ecológica nos anos 70 e as sucessivas cimeiras que se realizaram, desde a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano, que teve lugar em 1972, em Estocolmo, até à Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas,em 2015, em Paris. O segundo trata das diversas correntes da chamada “Ecoética Antihumanista”: a crítica ao humanismo ocidental, o Movimento de libertação animal e a “Deep Ecology”. No terceiro capítulo, fala da “Ecoética humanista” e mostra que só faz sentido falar de ética se reconhecermos que no centro da questão está o ser humano, o único responsável pelo sistema: o ser humano é sujeito de direitos e deveres. O autor, para fundamentar o seu ponto de vista, recorre a dois grandes pensadores espanhóis, Xavier Zubiri e Ignacio Ellacuría, numa exposição de uma clareza e rigor admiráveis. No último capítulo, “Proposta de uma Ecologia Integral”, o autor apresenta a sua posição, que é, como confessa, inspirada na encíclica do Papa Francisco Laudato Si (2015), que tão bem foi recebida por todos os que se preocupam com o cuidado com a “casa comum”, crentes e não crentes. Começa por expor, em síntese, o desafio ecológico com que a humanidade se confronta, mostra como a crise ecológica tem um carácter integral: tudo tem a ver com tudo. Como caminho para essa ecologia integral, o autor expõe, lembrando Paul Ricoeur, quatro relações que o ser humano vive: a relação consigo mesmo (antropologia), com os demais (solidariedade), com a natureza (meio ambiente) e com a transcendência (espiritualidade).
O livro é de uma clareza e rigor notáveis, qualidades exigidas numa obra como esta que faz uma história do movimento ecológico e apresenta uma proposta de actuação. Uma das maiores dificuldades de quem quer acompanhar o debate público em torno da ecologia provém, muitas vezes, da falta de clareza no uso do vocabulário, como disse acima. Por outro lado, a clareza deve, em meu entender, ser uma das qualidades de todos os textos, em especial daqueles que tratam assuntos importantes e polémicos, como são os que abordam temas que despertam paixões ou que chocam com tantos interesses, como os que estão presentes nas questões ecológicas.
Três notas para terminar. A primeira para sublinhar, tal como José Sols faz no seu livro, que é positivo o facto de todos as correntes de pensamento que se preocupam com a ecologia coincidirem neste ponto: confrontamo-nos com um problema gravíssimo originado pelo impacto da atividade humana. Agir sobre a natureza exige um cuidado extremo para que não seja posto em causa o equilíbrio do “sistema global Terra”. Esta unanimidade na preocupação pela casa comum é de reconhecer e saudar.
Em segundo lugar, é preciso reconhecer que o ser humano está no centro da problemática ecológica, quanto mais não seja porque a sua existência tem impacto ecológico e, aspecto de capital importância, o ser humano é o único ser que tem consciência dos problemas ecológicos e age com conhecimento, liberdade e intenção; isto é, o ser humano é um ser moral. Daqui parece dever concluir-se necessariamente que o ser humano se distingue dos restantes seres que o rodeiam. Porque o ser humano age como ser moral, não tem preço, é um ser com dignidade, como disse Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes; o ser humano é pessoa. Para utilizar uma linguagem aristotélica: o ser humano é essencialmente distinto dos restantes seres vivos.
Por último, é preciso ter uma noção clara do que se pretende dizer quando se fala nos “direitos dos animais”. Toda a linguagem é metafórica e isso ainda me parece mais notório quando se fala em “direitos dos animais”. Falar em “direitos” implica logo uma referência a “deveres”, relação que, por vezes, parece esquecida. A um direito corresponde um dever, como a um dever um direito; os pais têm o dever de educar os filhos, o que justifica os seus direitos às condições que lhes permitam o cumprimento dessa obrigação. Ora, faz sentido falar em “deveres dos animais”? Parece que não. Mas daí não se segue que o ser humano possatratá-los de qualquer maneira, como se fossem coisas, por exemplo. Não será mais lógico dizer que, por respeito para com a sua dignidade moral, o ser humano deve tratar bem dos animais? Por aqui justificamos o cuidado a ter com eles, e evitamos enveredar por um caminho, os direitos dos animais, que nos levará a impasses teóricos que podem ter consequência no agir humano.
O que acabo de dizer nos últimos dois parágrafos desencadeia, por vezes, discussões intermináveis em que também já me vi envolvido. Mas é preciso clarificar conceitos, defini-los com clareza para não nos deixarmos levar por modas ou por visões puramente ideológicas.