Poeta Mário Machado Fraião  – homenagem no Arquipélago de Escritores
Urbano Bettencourt

Poeta Mário Machado Fraião – homenagem no Arquipélago de Escritores

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Há uma primeira palavra a dizer e é para felicitar o Nuno Costa Santos por conseguir mais uma vez concretizar o seu Arquipélago  de Escritores, agora em quarta edição e em condições sociais mais saudáveis do que aquelas existentes há um ano, mais próximas também de uma normalidade desejável. É caso para dizer que pandemia rima com teimosia, mesmo que na estratificação poética os velhos  manuais a viessem a incluir no escalão da… «rima pobre» (como acontece noutros campos, também na literatura nem toda a gente nasce no meio  de banqueiros). Mas o que eu desejava salientar aqui é o renovado empenhamento de Nuno Costa Santos em manter um projecto literário e cultural que por estes dias amplifica o arquipélago e o expande, no seu  jogo de circulação e troca de olhares e perspectivas – e que este ano se desenrola em duas fases, uma em S. Miguel e outra na Terceira.
O Arquipélago  de Escritores, mesmo na sua circunscrição logística e geográfica, tem comprovado a asserção de Carl Sagan de que as ilhas são encruzilhadas. São-no por natureza,  mas tornam-se ainda mais  nestes dias em que é possível  dialogar e abrir  horizontes para questões afastadas das preocupações imediatas do dia a dia. E em que cada um é chamado a dar o seu contributo para um projecto comum.  
Um dos elementos integrantes de cada edição tem sido a homenagem prestada a  um determinado escritor, em diferentes moldes, em articulação por vezes com circunstâncias editoriais, valorizando-as e aproveitando-as com vista a um melhor conhecimento dos autores.
Isso acontece também este ano, com Mário Machado Fraião, nascido no Faial em 1952 e falecido em Lisboa em 2010.
A sua  poesia completa, As Ruas Demoradas,  foi publicada em 2020 pelo Instituto Açoriano de Cultura, em edição preparada Victor Rui Dores; e deste modo, a divulgação que se faça do poeta ganhará eficácia e sentido prático pelo facto de  sua poesia se encontrar à disposição dos leitores e acessível à leitura. A homenagem (com  uma sessão em Ponta Delgada e outra em Angra do Heroísmo) é um acto de justiça prestado a  um  poeta pouco menos que desconhecido e que,  por modo de ser ou por opção, sempre circulou na penumbra da instituição literária, em virtude também de edições precárias ou muito circunscritas.
As Ruas Demoradas reúne os seis livros de poemas publicados por Mário Machado Fraião entre 1980 e 1995, a que acresce um outro saído já postumamente em 2011.
A leitura de conjunto   proporcionada por esta edição permite verificar como a voz poética de Fraião constitui um momento singular no contexto das vozes insulares que então se afirmavam. Pelo modo como o discurso convoca  a memória dos lugares e a  memória cultural,  refazendo-as e articulando-as num texto marcado pela consciência melancólica da perda e da distância. Os lugares e os objectos, as pessoas e os acontecimentos,  mesmo quando presentificados,  chegam    envoltos numa névoa de passado, resgatados por aquilo deles permanece  como experiência comovida de afectos e amizades, de amores fugidios, talvez apenas supostos, de partidas e desencontros.  Referências cinematográficas e pictóricas, fragmentos textuais vindos da literatura e da música, nomes   de cantores cruzam-se nos poemas e dialogam com um discurso autoral subtil e esquivo,   ao mesmo tempo que recortam  o perfil  de  um sujeito poético multimodal  ou de muitas pluralidades culturais.
Esta é ainda uma poesia marcada no seu conjunto por um denso   imaginário atlântico, não apenas insular, mas também continental, embora o primeiro me pareça prevalecer com os seus signos e figuras de partidas (mais do que chegadas), os lugares marítimos precários ou transitórios, a(s) pequena(s) cidade(s) com a sua vida miúda e os seus cais de passagem, as personagens perdidas entre o cheiro do café, dos cafés, e o olhar alongado sobre o horizonte ou sobre os navios que o cruzam  sem se deter, mas igualmente abertas a quem aporta depois das  rotas do mar.  
Não encontramos  aqui a forte dimensão abstracta de Roberto de Mesquita (que, aliás, se demora ainda  por muitas destas  «ruas de fuga», como se lê  num poema), nem o realismo descarnado de Pedro da Silveira, nem a violência verbal e a denúncia de J. H. Santos Barros (porque mesmo a denúncia de Fraião  há-de fazer-se sob a metaforização suavizada). Há, simplesmente, a poesia de quem  recebeu da voz paterna a  missão de escrever acerca destas ilhas (mas não se deteve nelas) e decidiu fazê-lo de forma serena e contida, que é apenas uma opção pessoal e estética.

*Texto lido na abertura oficial do Arquipélago de Escritores
Câmara Municipal de Ponta Delgada

 

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