A minha relação com a imprensa escrita e o Diário dos Açores, entre 1850 e 1950
Sérgio Rezendes

A minha relação com a imprensa escrita e o Diário dos Açores, entre 1850 e 1950

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Os Açores são riquíssimos no que concerne à imprensa escrita entre 1850 e 1950, com especial ênfase para o último quartel do século XIX.
Não se trata apenas de uma questão de quantidade mas também de qualidade e diversidade, espalhados por várias ilhas.
Como exemplo, vejam-se os seguintes títulos, bem arquipelágicos: “O Picaroto” e o “Futuro” (Pico); “O Correio Mariense” e o “15 de Agosto” (Santa Maria); “O Eco Jorgense” e o “Fajã das Letras” (São Jorge); “O Açor” e “A Atualidade” (Faial); o “Açoriano Liberal” e o “Amigo das Famílias” (Terceira);  “O Graciosense” e a “A Ilha Graciosa” (Graciosa); “O Florentino” e “As Flores” (Flores) e mais recente, “O Tramela Aberta” (Corvo).
  Em São Miguel, e apenas em “D” (de “Diário dos Açores”), temos: “O Debate”, “O Defensor da Pátria”, “O Defensor do Trabalho”, “A Defesa”, “A Democracia”, “O Democrata”, “O Demócrito”, “O Diário de Anúncios”, “O Diário de Notícias Ilustrado” e “O Diário dos Açores” (velho e novo). Imagine-se o resto, de acordo com o alfabeto.
 Alguns títulos curiosos: “A Trombeta Açoriana”, “O Reclame”, “Sol e Sombra”, “O Toureiro”, o “Pobres da Terceira”, “O Protesto”, “A Independência”, “O Heroísmo”, “A Borboleta” (e a “Filha da Borboleta”), “A Evolução”, “O Chicote”, “O Cavaquinho”, o “Clarim”, o “Calva à Mostra”, o “Cantador das Aldeias”, “O Atleta”, “O Alcion”, “O Apepinador”, “O Cartista dos Açores”, “O Clamor Artístico”, “O Espirro”, “O Estandarte”, “O Estudante”, o “Etc”, “A Faísca”, “O Girassol”, “A Guerra”, “O Intransigente”, o “Ivens e Capelo”, o “Lusbel”, “A Luta”, “O Melrinho”, o “Noticioso e Romântico”, “O Pae Paulino”, “A Passarola”, “O Pigmeu”, “O Pimpão”, “O Pirilampo”, o “Pist”, “A Plebe”, o “Ponto nos ii”, “A Rabeca do Diabo”, “O Risota”, “O Sacho”, “O Burlesco”, “O Sinapismo”, “O Tio Brás”, “A Vara da Justiça”, “A Ventosa”, “O Vigilante” (I e II), o “Zé Brás” e o “Zé Careca”, são alguns bons exemplos.
Ilhas com o mais antigo jornal português em atividade, segundo mais antigo da Europa e três diários centenários, os Açores constituem assim um excelente ponto de partida para os amantes da investigação histórica que, ao longo da pesquisa arquivística, procuram informação complementar. No meu caso, desde 1987, sendo já longa a relação académica com a Imprensa, para não deixar de falar a nível pessoal, habituado desde sempre a ler o jornal em casa.
Relembro, na licenciatura, a análise ao “O Templo”, um jornal de temática religiosa, moral e literária, publicado por alguns intelectuais de Ponta Delgada visando a angariação de fundos para o asilo de Infância Desvalida.
De breve publicação (1856-58), foi administrado inicialmente por César Augusto Ferreira Cabido, auxiliado por Francisco Maria Supico, seu sucedâneo. Enquanto periódico é caracterizado pela inexistência de publicidade, sendo basicamente constituído por artigos de opinião ou transcrições de prominentes da Igreja, notícias nacionais e internacionais.
A poesia, sempre religiosa, muitas vezes de Teófilo Braga e Camilo Castelo Branco, marcava também presença num jornal quinzenal que chegou a ter algum eco nacional.
O seu aspeto messiânico e pedagógico prendia-se, para além do intuito de caridade para com os órfãos, com o facto de o século XIX ser por excelência, um século de debate sobre princípios sociais que envolviam a nova Sociedade Industrial e científica. Para “O Templo”, a religião continuava a ser a base Social, não devendo ceder o seu lugar às “novidades”. Apesar de novo na «[...] arena literária [...]», inexperiente mas corajoso, trazia a fé por escudo, a esperança por brasão e a caridade por divisa, apresentando-se como um “farol da redenção”.
Era ao tempo, a palavra do Senhor ouvida nos púlpitos das igrejas, tendo como missão entrar na vida doméstica para ser tranquilamente compreendida e meditada. Polémicas, eram “plantas exóticas” a não alimentar, usando-se do seu caráter intelectual e elitista para «[…] combater o infiel [...]», nomeadamente os cientistas se, colocassem em causa o dogma. Apesar de alguns artigos de dúbia veracidade, usava a Ciência como confirmação da Palavra, debatendo mitos sobre Cristo, as relíquias, a Igreja, a juventude, a ressurreição, a alma, a filosofia de Platão e Sócrates, o papel do Homem, da Mulher, da Criança, do Padre, etc.
A escrita e o uso de personagens históricas reforçam-no, tendo muitos artigos iniciados em latim e uma linguagem rica e elaborada, com recurso a interrogações, interjeições e exclamações numa tentativa de coagir, alertar, realçar e amedrontar o leitor. É comum encontrar figuras de estilo como o eufemismo, a hipérbole, a hipérbato, a perífrase, a prosopopeia ou a personificação, a metonímia, a sinédoque, a hipálage, a metáfora, o pleonasmo e a ironia, esta última muito utilizada para ridicularizar os inimigos do Dogma, desejando que os leitores «[...] rissem um pouco de Montesquieu […]».
Seguiu-se durante o mestrado, a Imprensa no final da Belle Époque, já com o “Diário dos Açores” no ativo. Publicado em Ponta Delgada a partir de 5 de fevereiro de 1870, o “Diário dos Açores” nasce como folha noticiosa de instrução e recreio. Carlos Enes em “Enciclopédia Açoriana” (2003), declara que ao “[…] longo da sua existência sofreu várias alterações no formato, na periodicidade e no título, dando origem a três séries, com numerações diferentes […]”. A primeira durou até 11 de junho de 1881, seguindo-se o “Novo Diário dos Açores” e a retoma do título original, a dois de janeiro de 1891. A periodicidade variava entre dois a três números semanais, intercalados por vezes, com publicações diárias. Fundado por Manuel Augusto Tavares de Resende, diretor até 1892, manteve-se muitos anos associado à família, variando no número de páginas, participando em momentos muito significativos da História dos Açores: lutas partidárias, centenários nacionais e estrangeiros, batalhas em defesa dos açorianos e jornadas em prol da fraternidade, destacam-se mais além das notícias quotidianas, culturais e desportivas.
O mesmo autor relembra que ao longo de várias gerações, deu “voz” a muitos intelectuais e que “[…] mantendo a independência política, nos primeiros anos do Estado Novo era considerado pelos governadores civis como o jornal preferido pelos elementos da oposição […]”, como adiante se verá.
Sobre a Grande Guerra nos Açores, relembro as infindáveis horas a ler todos os números do “Açoriano Oriental” entre janeiro de 1914 e dezembro de 1918, encontrando um semanário muito interessante, com informações triviais sobre quem chegava, quem partia, quem casava ou estava doente, para além da atividade no porto ou em outras vilas (dada a existência de correspondentes nesses “distantes” destinos) ou notícias, do longínquo conflito ou dos preços nos mercados.
À semelhança do “Diário dos Açores”, o “Açoriano Oriental” baseava muitas das sua notícias em informações transmitidas pelos passageiros e tripulações dos vapores ou recebidas, via Cabo Submarino. Dada a Liberdade de Opinião, apesar de oscilante durante a I República, o julgamento à “pasmaceira” das autoridades e à “imbecilidade” criminal é talvez, uma das suas melhores caraterísticas. Veja-se por exemplo, a forte crítica à falta de iluminação pública; ao envio para os Açores de prisioneiros políticos; da falta de civismo das populações, fosse pela atividade dos ladrões em São Miguel; pelos motins, controlados a tiro pelas autoridades na Lagoa ou pelas “medidas enérgicas” em Angra do Heroísmo, onde se deram “[…] grandes motins por causa do pão sendo assaltadas algumas padarias. Fez-se também política do caso, segundo depreendemos da leitura dos jornais dali. Os desordeiros não entraram na ordem às primeiras […]” (1917).
    Detentor, à semelhança dos restantes, de uma publicidade viciante e anúncios simples mas apelativos, este jornal denunciava tensões sociais latentes entre os locais e os estrangeiros, bem como a incapacidade da Polícia Cívica (por falta de meios) em superintender crimes que oscilavam entre o roubo de galinhas e os atentados à bomba, caso da residência do solicitador judicial em Lagoa. Clamava por mais agentes, melhores condições e dignidade no trabalho, bem como mais e melhor iluminação. Passados mais de cem anos, soa familiar? Cite-se a edição de 29 de dezembro de 1917 em que se refere que o governador civil de Angra do Heroísmo teve que “[…] pedir-lhes quase por amor de Deus (à população) que sossegassem […]”. Em outros números, lembra a falta do zoar do chicote do Juiz em Vila Franca do Campo. Afinal, as autoridades tratavam com muita brandura, os criminosos.
O comentário trespassa tudo e todos. Condena os exageros dos norte-americanos que, nos passeios a Vila Franca do Campo, atiravam moedas às meninas que apareciam às varandas (tornando-se alvo de represálias) e a falta de policiamento aos marinheiros estrangeiros, contribuindo para a implementação de Tribunais Militares nos navios norte-americanos. Simultaneamente, educa, explicando novidades nunca vistas, caso da aviação ou do submarino, pecando muitas vezes por desconhecimento e exagero.
Terminado o conflito, relembro já uma pesquisa dos atuais tempos de Pós-doutoramento: a menção agora no “Diário dos Açores”, ao emigrante faialense Manuel Mendoça. Após uma dececionante semana de pesquisa, “O Diário dos Açores” revelou-se um jornal de grande humanismo ao retransmitir o seu colega na Horta, “O Telégrafo”, declarando que após a passagem por Ponta Delgada, o SS “Roma” havia fundeado junto ao cais de Santa Cruz na Horta, a 5 de novembro de 1921. A diligência de Bateria n.º 1 de Artilharia de Montanha salvara o féretro com 21 tiros, seguindo-se os hinos de Portugal e dos Estados Unidos pela “Filarmónica Faialense” e um cortejo, incorporando as autoridades, os alunos, as associações e o Povo, à Igreja da Conceição, repetido no dia seguinte rumo à Praia do Almoxarife. Após uma breve e intensa paragem na casa de família, seguiram-se novas exéquias, discursos e a derradeira homenagem por três descargas de Infantaria 25 à entrada no mausoléu.
 Com muito mais a dizer sobre o período entre guerras, nomeadamente sobre as maravilhas tecnológicas que demandavam o Atlântico ou as contorções políticas nacionais, passo a um estudo comparativo dos preparatórios do doutoramento dedicado à II Guerra Mundial nos Açores. Relembrando a Censura e a forte propaganda do Estado nesses agitados tempos entre 1939 e 1945, recordo que as agências noticiosas eram limitadas e possuídas pelo Estado, desenvolvendo-se a partir das redações, a ênfase ou os destaques da informação associado ao conflito, ou às suas vítimas.
À semelhança do Diário da Manhã”, o “Correio dos Açores” seguia uma linha ideológica conservadora, muito próxima ao regime, destacando com pompa e circunstância eventos como a tomada da Checoslováquia, legitimando-a com razões históricas tal como fez com a queda de Paris. “O Diário dos Açores”, mais prático, questionava qual o futuro daqueles povos e quais os passos seguintes, por parte dos aliados. Dada a predominância de artigos que citam os grandes líderes alemães, é razoável entender o “Correio dos Açores” como um jornal que repassa o discurso oficial, usando-o como justificação dos acontecimentos, caso da Guerra Total de J. Goebbels ou a “Operação Valquíria” (1944), fazendo ecoar um discurso enérgico e citações fortes em contraste com uma retransmissão plácida do “Diário dos Açores” que, nem destaque dá ou mesmo refere, altos dignatários em momentos importantes.
Veja-se a questão dos judeus: “O Correio dos Açores” salienta as linhas de ação da política alemã durante a “Noite de Cristal” (1938), destacando a força que este Povo tinha na sociedade alemã em contraponto com “O Diário dos Açores” que humaniza a questão, chegando mesmo a interrogar-se sobre o lugar nas escolas e o ostracismo a que estariam devotas as crianças judaicas. Perante a descida de Rudolf Hess na Escócia (1941), “O Correio dos Açores” apresenta-se como perplexo, procurando respostas e justificando a ação de forma pouco credível. “O Diário dos Açores”, pragmático, faz prevalecer a ideia de que o objetivo era o de negociar a Paz com a Inglaterra, apesar de desmentida pelo líder alemão.
A omnipresença da Censura Prévia acaba por ser detetada no “Diário dos Açores”, na tomada de Estalinegrado (1942/43), por fazer passar pormenores que apontavam para a vitória do Fascismo sobre o Comunismo. Sobre o grafismo, salienta-se um “Correio dos Açores” que complementa a mensagem usando de forma mais frequente, poderosas imagens de temática alemã, apesar do equilíbrio nas temáticas militares, em ambos os jornais. O seu discurso é mais enérgico e vigoroso com o evoluir do conflito em contraponto com o do “Diário dos Açores”, mais narrativo, factual e dinâmico, na atualização da informação. Em ambos os casos informados pela Emissora Nacional, um diapasão à informação oficial, divergem no tratamento da informação ao privilegiar diferentes visões sobre os mesmos temas, numa atitude possivelmente conciliatória com uma sociedade micaelense dividida entre simpatias aliadófilas e germanófilas.
Outras dinâmicas podiam ser explicadas, caso do Verão Quente de 75 nos Açores, que deixarei para futuras considerações. Para já, salienta-se a satisfação de ter tão nobre imprensa nas ilhas, apesar de todos os desafios da contemporaneidade, lembrando a necessidade de a manter e acarinhar, dado o desaparecimento de grandes títulos como o “Telégrafo” ou o “A União”, não há muito tempo. A sua adaptação ao digital é um sinal de modernismo e sobrevivência, bem como o sinal de Liberdade de Imprensa que transmitem, constituindo uma ferramenta fundamental para filtrar a contrainformação ou desinformação das redes sociais. Jornais como o “Diário dos Açores” mantêm-se como fiéis da balança quando a dúvida brota; de expectativa e possível alívio, quando a urgência obriga; de companhia e conhecimento no nosso quotidiano. Acompanhando as suas “redescobertas” desde 1870, o “Diário dos Açores” constitui um companheiro de jornada a mais uma geração, um símbolo de resiliência, vontade, voz e expressão; de notícia e de educação, a reforçar perante uma Europa e Civilização Ocidental cada vez mais homogénea, mediante uma juventude que se espera, menos iletrada e mais pensadora que, a geração anterior.
Por todos estes motivos, e mais algum eventualmente esquecido nestas parcas linhas, desejo um feliz aniversário ao “Diário dos Açores”, extensivo às equipas que durante 152 anos, lhe deram Vida!
Que venham muitos, e muitos mais, com o dinamismo que lhe é próprio.

*Doutor em História Insular
e Atlântica

 

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