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Vergílio, o pastorinho de Ponta Garça

Chega-me às mãos, através do meu irmão José Elmiro, um opúsculo intitulado “O caso de Ponta Garça – conforme a narração da imprensa micaelense que lhe consagrou páginas ilustradas com reportagem minuciosa e observação claríssima (Tipografia Moderna, Angra do Heroísmo, 1940), compilação de João do Outeiro, um dos pseudónimos do historiador terceirense Gervásio Lima (1876-1945).
Na sua edição de 29 de julho de 1940, o jornal “Correio dos Açores” noticiava na primeira página e em letras gordas: Em Ponta Garça, concelho de Vila Franca do Campo, desta ilha, verifica-se desde há 3 meses um facto que está a despertar a curiosidade pública.
Tal curiosidade dava conta do seguinte: dois meses antes da data mencionada, Vergílio da Ponte Rego, um miúdo de 10 anos de idade, analfabeto, enquanto apascentava no outeiro uma cabra, disse ter visto uma figura de mulher, muito bonita e com luz em roda, que, depois, afirmou ser Nossa Senhora de Lourdes.

A notícia espalhou-se por toda a ilha de São Miguel e um repórter do “Correio dos Açores” dirigiu-se, em reportagem, à morada dos pais de Vergílio – um casebre paupérrimo de pedra negra e telhado de colmo – sita à Canada do Grotilhão, Ponta Garça. Encontrou “um pequeno espigado para a sua idade, descalço, de calças compridas de cotim azulado, presas por um cinto de coiro e camisa branca” e que, com ar vago, foi respondendo às perguntas, contando com a ajuda da mãe. Lá fora, homens, mulheres e crianças, trazidos pela curiosidade, irrompem, de olhos espantados, pela porta até ao meio do quarto com a intenção de falar, tocar e beijar o “menino”.
Às sucessivas perguntas do jornalista – “O que é que Nossa Senhor ate disse?” – a criança, começando por dizer que nunca fixou a Senhora de frente porque ela tinha um brilho muito forte, foi dizendo:

  • A Senhora disse que vem do Céu e vai para o Céu.
  • A Senhora disse que o povo tem pouca fé. Por isso é preciso rezar com fé.
  • A Senhora está muito ofendida e disse que é preciso rezar o terço à noite.
    Tal como sucedido na Cova da Iria, também em Ponta Garça foi anunciado, por Nossa Senhora, um “milagre” do sol com data marcada: 5 de outubro de 1940. Nesse dia todos os caminhos foram dar a Grotilhão, local das aparições. A pé ou em charabãs, de camionetas ou automóveis, a multidão engrossou a romaria. Cegos, paralíticos e pessoas com outras enfermidades chegaram-se mais à frente. O repórter calcula que lá estariam cerca de vinte mil pessoas, que se comportaram “sem um desacato, sem uma briga, sem uma nota de desordem ou de irreverência”.
    Instalou-se o alvoroço com a chegada de Vergílio. Caía uma chuva miudinha, o céu apresentava-se sombrio e o calor era sufocante. À passagem, o miúdo dá a beijar aos doentes o crucifixo que traz debaixo do braço. Atrás dele vem o pai, a mãe, os irmãos, fotógrafos e polícias, sob o comando do subchefe Barros. Separado do povo, protegido por um retângulo de madeira, à frente do qual se vê entre flores e castiçais um quadro da Virgem, o “menino”, com terço na mão e o crucifixo no braço esquerdo, põe-se de joelhos a rezar, “arqueando os braços num gesto de abraçar”. A certa altura, entra numa espécie de transe, a multidão sussurra e diz: “Nossa Senhora apareceu!”
    Há gritos lancinantes e choros convulsivos. Todos, em fervorosa devoção, olham para o “menino” e para o sol. Segundo o repórter do “Correio dos Açores”, “muitos ouviram uma zoada de vento que não sopra ou a impressão de um aeroplano ao longe. Muitos mais fixaram o sol e viram-nos uns a andar de roda, outros como se fora o disco da lua cheia nimbado de vermelho, outros ainda viram pelo centro listas amarelas e alguns houve que nada viram”…
    Perante o clamor da multidão, que vai rezando o terço, Vergílio voltou o rosto para ver o que se passava “e tornou depois à sua visão”. A pouco e pouco, passada a surpresa do sol, a vaga dos gritos acalmou. Então o pequeno, pálido, levantou-se e, com os olhos marejados de lágrimas, transmitiu à população:
    -Nossa Senhora disse que quer uma ermida aqui. Ela quer a paz no mundo inteiro, e diz que a Guerra vai acabar dentro de dias. Mas é preciso rezar. Rezar mais de rijo!
    A Segunda Guerra Mundial terminaria, sim, ma só 5 anos depois. A Igreja não se pronunciou sobre este caso. O que levou o articulista a questionar o dito milagre que, para ele, não passou de uma “sugestão coletiva”, e vai mais longe terminando a reportagem nos seguintes termos: “Não seria bom que se fizesse um exame psiquiátrico consciencioso à criança de Ponta Garça, por médicos da especialidade?”
    Sem mais comentários, fico-me por aqui com uma evidência: o caso de Ponta Garça é fenómeno de mimetismo em relação às aparições (hoje, visões) de Fátima de 1917.

“Sic transit gloria mundi”.

Victor Rui Dores

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