Edit Template

A vulgarização evolucionária da linguagem grosseira ou indecente

Palavras e expressões até recentemente consideradas obscenas, ou simplesmente grosseiras, fazem agora parte da linguagem coloquial da comunicação social.
A vulgarização de tais comportamentos considerados impudicos ou vulgares ocorre ao longo do tempo à medida que as normas culturais e sociais evoluem. Nos idiomas românicos, muitos dos palavrões tiveram origem no latim que em termos do português atual se chama «baixo calão». A origem das obscenidades talvez remonta aos primórdios da interação verbal da nossa espécie. A sua evolução poderia ter um propósito adaptativo, evitando a gravidade consequente da agressão física, e o risco de desencadear o conflito entre grupos. Na língua portuguesa, como noutras, estas vulgaridades muitas vezes manifestam desagrado, irritação, agressão, e até nada mais do que um hábito grosseiro sem uma razão clara ou justificável.
Os impropérios indecentes podem ser definitivamente repulsivos e desnecessários. Todavia, nem sempre o uso de palavrões perturba o relacionamento entre as pessoas ou a qualidade emocional da interação. Quando proferidos por indivíduos considerados modelos para a juventude, e membros da família, promovem a habituação que se reflete por vezes na interação com os próprios progenitores, os agentes da polícia, professores e outras figuras representativas da autoridade.
Em vários países, psicólogos observaram aquela prática antes repudiada como «falar da rua». Os investigadores concluíram que o recurso tabuístico nestes contextos não é consistente nem universalmente adverso, ainda que desnecessário. Consoante o contexto, pode aliviar o stresse e estabelecer um relacionamento mais íntimo entre os interlocutores ou fortalecer a camaradagem.
Há diferenças culturais entre os americanos, europeus, e povos asiáticos no uso conversacional desta linguagem em que a inserção de palavras obscenas sem qualquer função é referida no inglês como “insulto gratuito”, gratuito usswearing. Os americanos usam estes termos amiúde, nem sempre dissimulados nos neologismos ou pseudovocábulos para dar ênfase ao que dizem de modo menos ofensivo.
Os portugueses não são alheios a este fenómeno. Por exemplo, «caraças», substitui de modo tolerável uma interjeição ultrajante sem perder a intensidade da expressão. Mas em contraste com os americanos, os europeus não os usam com frequência comparável.
Na Ásia, em muitos países a língua tem uma interligação complexa com a hierarquia social, o respeito cultural e a harmonia comunitária. A aversão a obscenidades infrequentes nessas sociedades tende a derivar dos princípios confucionistas, os quais salientam o respeito pelos idosos, a autoridade e a conformação social. O idioma japonês, por exemplo, possui relativamente poucas obscenidades. O desrespeito é transmitido sobretudo com esgares subtis e a omissão de comportamentos tradicionais como a vénia. O valor de manter a harmonia do grupo e o respeito pela hierarquia societal reforça a relutância cultural em relação aos vitupérios indecorosos.
Na Europa há conotações de classe nesta linguagem que por vezes se ignoram. Nos Estados Unidos, porém, a classe é um fato menos influente. Os usuários encontram-se em todos os níveis sociais, incluindo o estrato mais influente ao cimo da pirâmide da ordem social, proferindo-as casualmente em situações em que a formalidade sugeriria serem inapropriados.
Os imigrantes europeus que procederam ao povoamento da América durante a época da ocupação, e também após a resistência dos povos aborígenes, poderiam ter contribuído para a liberdade na linguagem popular, como na ausência de outras normas sociais. Na base da Estátua da Liberdade, a inscrição do soneto de Emma Lazarus parece sugerir a estirpe de gente aventureira, pobre, corajosa, motivada, ciosa dos seus valores humanos, e muitas vezes sem refinamento ou sofisticação e sensibilidade social. «[…] as tuas massas amontoadas que anseiam respirar livremente, o lixo miserável da tua costa fervilhante […]» .
Ao longo da história, a cultura americana evoluiu com uma maior informalidade. O uso de linguagem casual quebra barreiras de classe e é visto como mais relacionável e legítimo. A televisão, o cinema e os mídia sociais têm um papel importante na normalização da linguagem considerada irreverente noutros países.
O etos americano exalta o individualismo e a oposição contra as normas sociais. Assim, a linguagem casual exerce de modo simbólico e subconsciente um desafio latente ao arquétipo colonial e o status quo. Contudo, a diversidade geográfica e cultural do vasto território americano mantém ainda diferenças regionais que se projetam na internalização dos aspetos conceptuais de vulgaridade e desrespeito em determinados contextos. O uso de linguagem previamente ofensiva pode ser uma forma de auto expressão, destacando o individualismo e a perceção de liberdade.
Em contrapartida, as culturas europeias tendem a manter uma abordagem mais formal da língua, especialmente em conjunturas profissionais. O ultraje verbal não é tão frequente por ser visto como impróprio quando transmitido com palavrões ou eufemismos, e mais representativo do caráter de quem os usa do que das qualidades morais da vítima.
Na América, a flexibilidade no uso da linguagem permite aos indivíduos projetarem diferentes aspetos da sua identidade, dependendo do contexto. Na Europa, porém, acentua-se o respeito que reforça as hierarquias sociais tradicionais. A compreensão tolerante destas diferenças pode melhorar a comunicação intercultural e promover uma maior apreciação das diversas formas como a linguagem molda as nossas identidades e interações.

Manuel Leal

Edit Template
Notícias Recentes
Detida pessoa pela suspeita da prática do crime de violência doméstica contra a sua namorada
Câmara Municipal de Ponta Delgada apoia encontro de Alojamento Local
Açoriana Márcia Sousa é a primeira mulher nomeada Presidente das Grandes Festas do Espírito Santo da Nova Inglaterra
SATA lança campanha com promoção de voos a baixo preço até 24 Janeiro
Crianças açorianas estão a consumir mais fruta e hortícolas nas escolas
Notícia Anterior
Proxima Notícia

Copyright 2023 Diário dos Açores