De há muito acompanho o interesse de Jorge Barros pelos Açores. Guardo na estante e na mente belas fotos das minhas ilhas de berço desde um álbum por ele publicado em anos perdidos na memória. Não há muito tempo, cruzámo-nos calcorreando as ruas de Ponta Delgada, ele carregando ao ombro sofisticado equipamento fotográfico e eu, munido de um simples iPhone. Fotografávamos os criativos e coloridos tapetes de flores a poucas horas da passagem da procissão do Senhor Santo Cristo. Nem me atrevi a pedir-lhe as suas fotos de profissional para não me envergonhar com as de amador que sou. Mas ali partilhávamos uma paixão pelos Açores. A minha, porém, de nativo, era natural. A dele, um continental, é que carecia de explicação. Nunca obtida porque veio a pandemia e o meu pedido ficou adiado. Até eu receber dele um email:
Ando há muitos anos a conviver com os Ranchos de Romeiros 1 na ilha de S. Miguel que, durante a quaresma, percorrem trilhos, caminhos e estradas à volta da ilha.
Sempre me fascinou aquele mistério, de grupos de homens a caminhar rezando, cantando e confraternizando com serenidade, nas pausas para comerem e descansarem.
[…]
Penso ser fundamental para o leitor enquadrar-se nesse estado de espírito sabendo da razão histórica deste acontecimento ímpar no mundo.
Conhecendo-te com um grande gosto pela tua terra é razão para te convidar a participar neste meu projecto com um texto de introdução […]. 2
Na verdade, esta transcrição do convite, se feita por extenso, bastaria para servir de introdução ao seu livro, sem necessidade de qualquer participação minha. Até porque nunca fui de romeiro. Nem sequer os fotografei. Na minha rota de vida, não aconteceu passar em S. Miguel uma Quaresma desde os meus treze anos. Por sinal guardo deles uma impressão de quase medo. Na minha infância, ouvi-los cantar em tom plangente e cavernoso aquela Avé Maria cheia de graça, o senhor é convosco, bendita sois vós…arrastada e sofrida amarfanhava-me as entranhas transmitindo por todo o meu corpo um tenebroso, quase tétrico arrepio. A minha ilha triste em Março, os homens de xaile, bordão, lenço e terço, descalços caminhando sobre o chão molhado arrochavam-me o coração. A minha alegria congénita nada tinha a ver com aquela tristeza dolente a rondar o funéreo.
Daí a minha inicial vontade de escusa face a este convite.
Que quer então o Jorge Barros que eu venha dizer? Que tenho ouvido testemunhos das pessoas mais impensáveis que se submeteram à experiência e juraram que ela deveria ser obrigatória para qualquer ser humano? Nenhuma delas me disse que se juntou à romaria para cumprir a promessa supostamente feita há cinco séculos pelos meus antepassados que, confrontados com a fúria aterradora da lava a descer do vulcão ameaçando devorar tudo e todos, alvoroçados e em pânico prometeram percorrer todos os anos a ilha a pé durante uma semana inteira parando em todas as igrejas dedicadas a Nossa Senhora. Isso consta da história, todavia os romeiros de hoje com quem converso dizem-me que se incorporam sobretudo porque os que já fizeram a romaria juram a pés juntos ser uma experiência profundamente marcante: calcorrear a ilha rezando em uníssono numa sintonia misteriosamente telúrica e transcendente, não raro sob o espesso nevoeiro ilhéu e a teimosa e impertinente chuva, alheios a qualquer tipo de intempérie porque arrebatados por uma força coletiva roçando o místico, provocava uma catártica lavagem na alma, antítese da imagem espelhada no cansado físico de cada romeiro.
Não, não sei explicar. Acontece apenas em S. Miguel, e agora também em Fall River e em Toronto (em versão reduzida a um dia), para onde a tradição emigrou no saco das memórias ilhoas que o clássico quadro de Domingos Rebelo “os Emigrantes” não registou, mas deixa adivinhar.
Nas outras ilhas dos Açores essa tradição é estranha. Sobretudo na Terceira, onde se diz que em S. Miguel a ideia de uma festa é andar na rua com um santo às costas. Há qualquer coisa de islâmico na fé micaelense. Não sei se terá chegado à ilha via Alentejo, que me parece ser a mais profunda influência ali. Mas nada que os historiadores possam confirmar. Gaspar Frutuoso, a nossa fonte única, escreveu os seus muitos volumes de Saudades da Terra mais de cento e cinquenta anos após os Açores serem povoados e nada esclarece. Portanto, tudo permanece enigmático. E misterioso, como é tudo o que com esta tradição se associa.
As romarias de hoje já não carregam aquela marca de deprimente tristeza (e, diga-se, de pobreza) da minha infância. Antigamente, os romeiros pernoitavam em casa dos habitantes da última freguesia aonde chegavam, que fraternalmente iam ao adro da igreja oferecer os seus préstimos – uma ceia, uma lavagem dos pés e uma cama com lençóis lavados até à alvorada porque a regra era partir para continuar a caminhada antes de o sol nascer. As tradições também evoluem e muitos romeiros sentem necessidade dessa terapia anual, uma lavagem do seu íntimo, uma experiência de religação ao essencial da vida do espírito.
Nos meus arquivos pessoais, tenho uma nota sobre este tema de que reproduzo aqui uns parágrafos:
Aqui há poucos anos, deparei por acaso na livraria Culsete, em Setúbal, com o livro Segredos Revelados. Uma Viagem à Ilha e as Romarias Quaresmais Micaelenses, de Joaquim Figueiredo (Lisboa: Fonte da Palavra, 2011). Adquiri-o de imediato e comecei a lê-lo ainda em Portugal.
Nunca fui de romeiro e só tenho ouvido relatos de gente que fez a experiência e jura por ela. O Miguel Moniz, meu aluno e colaborador aqui na Brown onde se doutorou em Antropologia, agora no ISCTE, saiu duas vezes com os romeiros do Pico da Pedra e não se cansava de evocar e enaltecer a experiência. Dos romeiros tenho no ouvido a sua toada dolente, plangente e funda, cavernosa mesmo, naquela inconfundível “Avé Maria” arrastada e sofrida, mais as imagens dos xailes, lenço, terço, bordão pingando de suor ou de chuva. Saí demasiado jovem de S. Miguel e nunca mais lá voltei em tempo de Quaresma, altura das peregrinações de sete dias em torno da ilha visitando todas as igrejas dedicadas à Virgem Maria.
Agora foi a primeira vez que encontrei um relato minucioso da experiência. O livro, aliás, contém dois. A primeira parte narra a vivência do autor seis meses na ilha há vinte anos, quando lá foi fazer uma série de espetáculos com uma rábula de sua criação. É a segunda parte que mais novidade constitui pelos interessantes dados sobre essa tradição das romarias quaresmais, como por exemplo as normas rígidas impostas aos irmãos “que vão de rancho”. O autor revela um notável espírito de observação, tem o cuidado de tomar notas e age como um antropólogo, com a diferença que participa mesmo como peregrino e vive a experiência com autenticidade. O livro inclui registos que abrem para a misteriosa alma micaelense, o modo como convive com a tristeza, a doença, o sofrimento e a morte, e se entrega a uma prática aparentemente masoquista como a descrita com alguma minúcia nestas páginas. 313,5 km e meio a pé em sete dias, muitas vezes sob chuva forte e ventos, bolhas de água nos pés, caminhadas na lama, ajustamento a personalidades diversas e total obediência ao mestre, reza sem fim até os bofes quererem escapar-se pela boca. O autor levanta o véu sobre algumas das diversíssimas razões que empurram muitos romeiros para tal sacrifício. Uma delas fixou-se-me: “a solidão que sentem depois de entrarem na reforma”.
Não vem ao caso, todavia registei a sensibilidade do autor à paisagem micaelense – em todo o livro, mas particularmente ao longo do percurso da romaria. Como Joaquim Figueiredo não é propriamente um narrador literário, mas mais um jornalista com vocação para antropólogo, não se lhe soltam rasgos que captem em palavras para o leitor os cenários que o deslumbram – no entanto regista com frequência o quanto eles o impressionam. Tem, além disso, o cuidado de anotar pormenores históricos sobre a maioria dos lugares e igrejas visitadas no percurso, bem como observações acerca de aspetos arquitetónicos e artísticos destas últimas. Naturalmente que esses elementos não lhe foram fornecidos pelo mestre da romaria, mas de certeza coligidos posteriormente pelo autor. Esse interesse pouco comum entre nós ficou, aliás, patente no relato da sua primeira visita a S. Miguel, quando revela que, no intuito de conhecer melhor os Açores, leu uma notável quantidade de livros de história, cultura e literatura açoriana que pessoas diversas lhe ofereceram.
1 São grupos de número variado de romeiros [uma média de 25 a 30 cada], com origem nas mais diversas freguesias da ilha.
2 E-mail de 15 de outubro de 2023.
Onésimo Teotónio Almeida