“Subitamente, o HDES tornou-se o centro dos problemas do Sistema Regional de Saúde (SRS). Um órgão importante do “corpo” do SRS, que já estava doente, entrou em estado crítico de funcionamento. O problema é que a doença não é do “órgão”, a doença é mais difusa, é sistémica.”
Nota: a CEC é uma técnica que permite, sustentada num sofisticado aparelho externo, substituir as funções do coração e dos pulmões em situações clínicas muito críticas necessitando de delicadas operações (p.e., transplantes) ou de tratamentos e suporte extremos à vida.
Depois de um grande e destruidor incêndio na “casa das máquinas” vai para nove meses, o HDES foi completamente encerrado por demasiado tempo, como todos nos lembramos, e os doentes, serviços e profissionais repartidos por várias “casas”. Incompreensivelmente, sectores vitais do seu funcionamento não atingidos pelo fogo foram considerados impróprios e obsoletos para a função que vinham desempenhando. Foram eles: o conjunto de enfermarias do sector poente (mais de 200 camas desactivadas sem se saber porquê); as 6 salas de Bloco Operatório (BO – considerado “impróprio para efectuar cirurgias”); o Bloco de Partos/Maternidade (razão desconhecida); o Serviço de Urgência (SU – considerado “obsoleto e indigno” para atender doentes); e a Unidade de Cuidados Intensivos (UCI – “desactualizada”).
Duas semanas apenas depois do incêndio, estava-se ainda na fase de rescaldo e de avaliação sumária dos estragos, foi tempo considerado suficiente para uma Comissão denominada de “Catástrofe”, liderada pela Senhora Secretária da Saúde, ditar a necessidade da construção de um Hospital Modular como solução para a recuperação, em segurança (sic), da actividade perdida e impossível de recuperar no futuro próximo (relatório publicitado a 5 de Junho de 2024). Veio a perceber-se mais tarde, por pressão da opinião pública, que, afinal, a solução do HM incorporava um plano muito mais vasto: o de proporcionar com esta estrutura a reconstrução, remodelação e renovação (R,R & R) do hospital, num ambicioso projecto de redimensionar o caduco HDES no “Hospital do Futuro, referência nacional e internacional”. Este foi o momento da encomenda do aparelho de CEC.
Subitamente, o HDES tornou-se o centro dos problemas do Sistema Regional de Saúde (SRS). Um órgão importante do “corpo” do SRS, que já estava doente, entrou em estado crítico de funcionamento.
O problema é que a doença não é do “órgão”, a doença é mais difusa, é sistémica. E neste tempo decorrido de 9 meses após o “enfarte” inesperado do HDES perdemos todos a perspectiva da abordagem da doença do SRS. Sim, o SRS está há vários anos doente, padece de um estado de inflamação indeterminado, crónico, que lhe provoca anemia, letargia e depressão. Exausto pelo desgaste de perturbações “autoimunes” – desregulação da imunidade que se torna agressiva ao próprio corpo -, que podemos congregar simplisticamente num sistema que paralisou várias funções, ironicamente designado de “Saudaçor”. Embora tardiamente, esta formação de desenvolvimento ectópico, acabou extirpada deixando contudo um lastro de graves e duradouros prejuízos. Mas não tem de ser uma doença fatal, bem pelo contrário.
Caracterizemos melhor a sintomatologia:
- “estado inflamatório”: febre duradoura, com altos e baixos, mitigado por “panasorbes”, múltiplas vezes anunciada como resolvida pelos clínicos assistentes, onde se incluem não só “médicos” do Sistema, mas também “enfermeiros” de vária Ordem. Os picos de mais elevada temperatura têm-se verificado, curiosamente, no ambiente humoral de uma Assembleia de gritos e assanhos, expondo o paciente (e muitos dos dedicados cuidadores) à beira do estado convulsivo.
- “anemia”: estado enfraquecido do sangue resultante, por um lado, da febre persistente e, por outro, atribuível à carência de macro e micronutrientes, minerais que apesar de fornecidos em doses generosas (sobretudo a “prata” e o “ouro”), não têm tido a absorção correcta nem produzido os resultados pretendidos;
- “letargia”: estado difuso de ausência de vontade, de energia, para o que quer que seja, para desempenhar tão só as tarefas que se nos impõem no quotidiano, quanto mais pensar nas do futuro, todas elas imprescindíveis a um Sistema que cuida de uma multidão de pessoas. Neste estado instala-se um sentimento de “deixa andar”, “venham outros que resolvam”, “há tantos responsáveis a quem nada lhes acontece, porquê nós?”;
- “depressão”: estado caracterizado por continuado abatimento do humor, por vezes marcado por grande irritabilidade e ansiedade perante situações de stress, incapaz de sentir um descanso reparador, vontade de desistir, de se refugiar num canto, de não ouvir os outros, de não se importar consigo próprio, no limite, de desaparecer, de deixar de assumir o mais simples dos compromissos.
As múltiplas análises efectuadas demonstram alterações que, apesar de bem conhecidas, se persiste, irresponsavelmente, em ignorar, conduzindo a um permanente desgaste e continuado desperdício de recursos humanos e financeiros. Perde-se sistematicamente o foco do que é fundamental: o SRS necessita de “soros” sucessivos de administração endovenosa para que, com estratégias e planos consistentes, se reformule, se reorganize, se modernize: dote os vários “órgãos vitais” do seu Sistema (e o HDES é só um deles) de capacidades e de autonomia(s) de modo a constituírem-se factores de motivação e de vitalidade da “sua estrutura celular”, a base onde reside o sucesso de todo o bom funcionamento de trocas complexas com o ambiente envolvente, a sociedade, a comunidade que pretende e diz servir.
Em vez de adopção de medidas bem pensadas, algumas simples outras menos, mas todas devendo ser sensatas, adoptou-se o atalho do secretismo de decisões de curto prazo, com forte pendor propagandístico, carregado de dramatismo despropositado, caríssimo, como se não houvesse alternativa à repetida e cansativa ideia da “janela de oportunidade”.
Depois de um tão grande esforço para fazer regressar o universo dos doentes de cuidados hospitalares, e todo o desgastado e sacrificado pessoal ao “perímetro do hospital”, constata-se que esse projecto, afinal, confinou-se a um equipamento caríssimo de circulação extra-corporal (CEC), embora de elevado padrão tecnológico conceptual, diz-se até, animado por processos de Inteligência Artificial (IA), mas que, quando precisa de sair da cerca a que se remeteu, necessita de um “Ambrósio (condutor fardado da Senhora de amarelo em RollsRoyce)” alugado a 75€ ao dia.
Entretanto, tivemos o anúncio de um “upgrade” estrutural deste equipamento: sabemos que passou de possuir 16 lugares sentados de espera para 80 (mau sinal?).
Falta talvez o mais importante “upgrade” para que este CEC reanime o corpo doente: a sua efectiva ligação ao interessado, o “shunt” que conduzirá o oxigenado sangue à sua vasta estrutura celular e ao seu deprimido cérebro.
Aceitam-se ideias: uma ponte suspensa, panorâmica, ou um túnel subterrâneo entre ameaçadoras fossas sépticas? A que custo?
Guilherme Figueiredo*
*Reumatologista, ex-Director do Serviço de Reumatologia
do HDES/
Dir. Executico da CAL-Clínica