Nasci no concelho de Ponta Delgada no ano da Graça de 1957, na Freguesia de Feteiras, nas fraldas do vulcão das Sete Cidades, também chamadas Feteiras do Sul, certamente para não confundir com as do Norte, a Grande e a pequena no concelho do Nordeste.
Nasci na Rua da Igreja 15, paredes meias com a torre da Igreja que nas Feteiras é diferente de todas as outras da ilha, porque a torre fica no lado oposto ao adro e à entrada principal. Nasci na casa do meu avô Raposo, conhecido como Sr. Raposinho, comerciante respeitado que não cheguei a conhecer. Uma casa grande secular, como dizia Régio… “cheia dos maus e bons cheiros das casas que tem história… cheia de sol nas vidraças e de escuro nos recantos”. Nasci no quarto de cima, na mesma cama em que nasceu minha mãe que teria hoje 103 anos ,viveu até aos 96, e a minha irmã que também já partiu e que nasceu dois anos antes de mim.Nascemos os três na mesma cama e no mesmo quarto da velha casa das Feteiras.
As Feteiras, a apenas quinze quilómetros da cidade, pareciam-me em criança muito longe da sede de concelho. À cidade só se chegava na camionete do Martins ou no carro de praça do Sr. Carlos. Uma eternidade… quer se fosse pelo ramal e pela estrada principal, quer se subisse a freguesia pela rua principal, toda em terra, até à vigia da baleia, já que as Feteiras só receberam o alcatrão e a eletricidade depois do 25 de Abril.
A minha infância foi na verdade passada em Santa Maria onde meu pai trabalhava na Air France e mais tarde na SATA, mas as férias de todos os anos passava-as na casa das Feteiras, correndo entre os buchos da quinta, comendo uvas na terra da Lomba, indo fazer recados à loja do João Rodrigues ou a casa de Mestre José Cadime onde ficava a vê-lo trabalhar, fazendo portas, bancos de cozinha e caixões forrados a tecido, lá para as bandas do cemitério a caminho do porto.
Passávamos os serões em casa a jogar cartas e damas, à luz de petromax e dos candeeiros de petróleo.
Cresci pois também, sempre na excitação do regresso a Ponta Delgada e ao meu concelho de nascimento.
Nos dias em que passava na cidade, adorava ir com minha tia manhã cedo ao peixe, o Barracão na Calheta de Pêro de Teive de boa-memória, cheio de pescadores e vendilhões, o mar ao lado às vezes escuro e mexido ali à beira dos nossos pés, na pequena enseada pejada de barcos de cores garridas, os pescadores juntos no paredão e nas tascas da Rua do Poço, onde muitos viviam. Conheci também assim, com os meus cinco anos, o mercado da Graça e os seus pregões, pilhas de melancias e frutos cheirosos com vendedores descalços empoleirados entre cestos de vimes e tapetes de couves. À noite apanhávamos a Central para ir ao Campo de São Francisco comer um gelado do Esquimó, rezar à porta do Sr. Santo Cristo e regressar a casa, a cabecear de sono, a ver as montras da Rua da Esperança à Machado dos Santos, subindo a de São João ao Teatro e a Rua do Perú para acabar na Rua do Negrão.
Meu pai uns anos mais tarde, levava-me de manhã a fazer a ronda pelos amigos e foi assim que conheci em Ponta Delgada, Manuel Inácio de Melo e José Barbosa que fora seu Padrinho de casamento e que corrigiu os meus primeiros escritos, no pequeno escritório nos fundos das Artes Gráficas.
Depois íamos ao Bureau de Turismo para uma conversa como meu mais tarde querido amigo João Silva Júnior, uma passagem para um café no Royal onde pairava ao fim da manhã outra tertúlia e à noite serão no Correio dos Açores, com Manuel Ferreira, Ruy Guilherme de Morais e Gustavo Moura.
Claro que para mim rapaz… as compensações eram uns bolos no Lys ou no Gil com as suas cadeiras de fio de plástico e o magnífico cheiro do galão e das torradas, ou uns livros do Mundo de aventuras comprados na Tabacaria do Zé Carlos.
O meu reencontro com Ponta Delgada deu-se no meu sexto ano do Liceu, em que vim viver sozinho para a minha cidade.
Recordo-me de subir pela primeira vez só ao alto da mãe de Deus e contemplar o casario de telha escura, apenas furado pela torre da matriz e o seu relógio, o olhar chegando a São José, quase a Santa Clara, o prazer de passear pelo Jardim António Borges e descansar na Zenite ou no Jardim do Colégio e deslumbrar-me com a beleza dos seus cantos e esquinas.
Na casa onde vivia, tinha o privilégio do meu quarto dar para trás ainda sem a torre monstruosa a cortar a vista, e tinha quatro janelas que abriam para o mar.
Era no Largo de Camões e lá do alto via o mar saltar a doca em dias de tempestade, o baloiçar da manobra do piloto da barra, o Funchal e o Angra a apitarem na saída do porto.
No Sr. Santo Cristo tinha o circo e as barracas dos tirinhos como vizinhança que não me deixavam dormir noite dentro, entre os discos voadores, os carrinhos de choque e o apresentador do circo…
Nesses anos magníficos do Liceu Antero de Quental, alguns amigos ajudaram-me a descobrir o que me faltava da cidade, as tascas saborosas como o Avião e o Mestre José Tavares, as bibliotecas e os livros, o Ateneu Comercial, os grupos de jovens e uma geração notável de professores que me marcaram para a vida inteira de Ruy Galvão de Carvalho a José de Almeida Pavão.
Quando uns anos depois regressei à minha cidade para dirigir a televisão local, achei que era altura de lhe dar um pouco de mim e retribuir o tanto que ela me deu.
Em 1985 há exatamente quarenta anos, contra resistências internas e externas e sem dinheiro, decidi pegar na obra do meu ex-professor e primo Almeida Pavão “Xailes Negros” e apostar no Zeca Medeiros que viera comigo de Lisboa, para a por em ficção televisiva. Diziam-me que talvez não fosse a escolha acertada… que não se podia fazer ficção com as câmaras do Telejornal…
Mas aquelas mulheres de Xailes Negros das Sete Cidades, eram as mesmas que enchiam a Igreja das Feteiras na missa da manhã ainda noite, as que se despediam dos filhos que partiam para o Ultramar, as que se escondiam no luto dos maridos que morriam no mar, as que faziam fila junto aos Correios para entrarem na camionete do Martins quando vinham tratar dos papéis à Agencia para emigrarem ou ao médico tirar umas chapas com dinheiro emprestado. Quando vi as primeiras imagens que o Zeca me mostrou, com o nevoeiro sobre as lagoas, o Paulo Martinho, o Henrique Batejana e tantos amigos amadores a representarem tão bem a nossa gente, tive a percepção que pela primeira vez em dez anos de televisão nas ilhas, o nosso povo se encontrava na sua autenticidade no nosso écran.
Nesse mesmo ano e muitos anos antes de existir a RTP Internacional, outra aventura, pela primeira vez a transmissão direta para os Estados Unidos via satélite, da Procissão do Senhor e das Festas da Cidade. Recordo-me de estar na régie ao telefone com o Canal 20 para saber se estavam a receber bem.
Tinha em linha o já desaparecido José Rebelo Mota. Eu ouvia o hino do Santo Cristo tocado pelas filarmónicas, com o delay próprio do satélite, mas o Zé Rebelo Mota não respondia às minhas perguntas. Estava a chorar e eu também chorei com ele porque sabia o que significava esse momento para como dizia Monsenhor José Gomes, a gente da minha terra.
Voltei a emigrar para Lisboa há trinta pela segunda vez.
E tenho sempre presente comigo a cidade de Antero e de Teófilo, de Hintze Ribeiro, dos Cantos, de José Bruno e de uma plêiade de gente ilustre da cultura Portuguesa que nasceu na nossa urbe.
Hoje a cidade cresceu em área, novas urbanizações e vias rápidas, é uma cidade moderna e ativa, bem cuidada, com boas infraestruturas, atenta aos seus munícipes e a quem a visita.
Sempre que a vejo do ar, aproximando-me da ilha, desde o Pópulo, a São Roque, o olhar subindo pelo casario até às Fajãs e aos Arrifes – hoje tudo unido, depois à marina, ao Porto de cruzeiros e à marginal, até roçar as árvores da Príncipe do Mónaco e rolar finalmente na pista da Nordela a emoção é sempre a mesma… estou outra vez no Ramalho a caminho das Feteiras e já estou no regresso à cidade…
Lisboa 2 de Abril de 2025
por Lopes de Araújo*
*Texto lido na cerimónia de aniversário da Cidade de Ponta Delgada, na passada quarta-feira, no Coliseu Micaelense