O mundo está a assistir a um tempo de grandes interrogações, acontecimentos únicos, cujo desfecho está envolto em grande imprevisibilidade.
A morte do Papa Francisco e a eleição do seu sucessor, em meu entender, marcarão a história deste século, se bem que outros acontecimentos possam também ter desenvolvimentos imprevisíveis. Refiro-me aos conflitos na Ucrânia, em Gaza, no Paquistão, no Sudão, na Síria, em Myanmar, no Haiti e em Moçambique, à Presidência de Trump, só para citar os mais importantes. Nenhum deles conduzirá à paz se não houver diálogo, negociação e cedências de parte a parte, que ponham termo a lutas terríveis que ceifam vidas e impedem o desenvolvimento dos povos das periferias mais carenciadas. Esta foi uma das principais preocupações do Papa Francisco, mesmo no final da vida.
O seu sucessor terá também essa incumbência, venha de onde vier e tenha a mentalidade que tiver.
“A solicitude social da Igreja, que tem como fim o desenvolvimento autêntico do homem e da sociedade, que respeite e promova a pessoa humana em todas as suas dimensões”i , faz parte do Magistério dos Romanos Pontífices e da Doutrina Social da Igreja, afirma João Paulo II.
Já antes, em 1967, Paulo VI afirmara na encíclica “Populorum Progressio” (PP), que o “Desenvolvimento é o novo nome da Paz”. Esta preocupação da Igreja advém do “dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder de maneira adaptada a cada geração.”- afirma o Concílio do Vaticano II. E acrescenta: “É necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole fortemente dramática”ii .
Quais são essas aspirações? Responde o Papa: “Ser libertos da miséria, encontrar com mais segurança a subsistência, a saúde, um emprego estável; ter maior participação nas responsabilidades, excluindo qualquer opressão e situações que ofendam a sua dignidade de homens; ter mais instrução; numa palavra, realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais: tal é a aspiração dos homens de hoje.” (PP nº6).
Já antes as questões sociais haviam sido analisadas por João XXIII nas encíclicas “Mater et Magistra” (Igreja: Mãe e Mestra) e “Pacem in Terris” (Paz na Terra), respondendo a questões sociais que afectavam os povos do mundo inteiro.
No nosso país, esses documentos foram silenciadas devido à pressão do regime fascistas sobre quem ousava divulgá-los e contestar a guerra colonial. Houve, todavia, movimentos da Ação Católica, nomeadamente os ligados ao operariado (JOC e LOC) que não se amedrontaram e desenvolveram ações de grande mérito tendentes a denunciar e resolver situações de injustiça que a hierarquia não ousava nem comentar, nem denunciar.
Esse prolongado silêncio ainda se mantém em relação à Doutrina Social da Igreja e afeta a consciência e participação laicais. De tal forma que o Papa Francisco considerou essa uma forma de clericalismo como “um chicote, um flagelo, uma forma de mundanismo que suja e mancha o rosto da esposa do Senhor; escraviza o povo santo e fiel de Deus”.
Ao contrário do que ainda hoje se afirma, o Magistério da Igreja tem uma visão evangélica permanentemente aberta sobre os temas e problemas da sociedade humana.
Recordo algumas afirmações de Paulo VI que comprovam o que afirmo e que ainda hoje mantêm atualidade:
-”Em certas regiões, uma oligarquia goza de civilização requintada, enquanto o resto da população, pobre e dispersa, é “privada de quase toda a possibilidade de iniciativa (…) e colocada, até, em condições de vida e de trabalho indignas da pessoa humana.” (PP 9)
-“São muitos os homens que sofrem, e aumenta a distância que separa o progresso de uns da estagnação e, até mesmo, do retrocesso de outros”.(PP 29)
-“A fome de instrução não é menos deprimente que a fome de alimentos: um analfabeto é um espírito subalimentado.” (PP 35)
-“O supérfluo dos países ricos deve pôr-se ao serviço dos países pobres.” (PP 49)
-“Torna-se um escândalo intolerável qualquer esbanjamento público ou privado, qualquer gasto de ostentação nacional ou pessoal, qualquer recurso exagerado aos armamentos.” (PP 53)
-“O nacionalismo e o racismo são obstáculos à formação de um mundo mais justo e mais estruturado numa solidariedade universal.” (PP 62).
E podia continuar a citar encíclicas posteriores sobre a problemática social, publicadas por João Paulo II, nomeadamente a “Laborem exercens”, sobre o trabalho nas suas mais diversas vertentes. Nesta carta, datada de 1981, o Papa afirma que “o primeiro fundamento do valor do trabalho é o próprio homem” e não o capital, e que “o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho” (LE 6). Critica-se o materialismo, o economicismo, valoriza-se os sindicatos (“expoente da luta pela justiça social”(LE20)), defende-se o salário (“a justa remuneração”, o “salário familiar ”LE 19)), o emprego, as subvenções sociais, o direito ao repouso, o trabalho das pessoas deficientes (“segundo as suas possibilidades” (LE 22) e até o problema da emigração (“ O homem tem sempre o direito de deixar o próprio pais de origem por diversos motivos (…) e de procurar melhores condições de vida noutros países” (LE 23).
Muitos outros textos podia aqui referir para documentar o pensamento do Magistério sobre a problemática do ambiente e da ecologia no mundo de hoje.
João Paulo II, ciente da necessidade de a hierarquia transmitir o que pensa a igreja sobre essas temáticas afirmou: “O ensino e a difusão da doutrina social fazem parte da missão evangelizadora da Igreja. E tratando-se de uma doutrina destinada a orientar o comportamento das pessoas, há-de levar ao “empenhamento pela justiça.” (SRS 41).
Ao longo de décadas, por razões várias, a mentalidade reinante de uma religião desencarnada e avessa ao mundo, meramente espiritualista e pietista, ignorou “as alegrias e as tristezas dos homens de hoje” (GS 1) na sua “missão evangelizadora”. A formação do clero foi nesse sentido, deu primazia à Teologia Dogmática e Apologética, ao Direito Canónico, à Moral casuística, ao ritualismo litúrgico, ao pietismo e à Escatologia e desvalorizou a Teologia Bíblica, a Doutrina Social da Igreja e a prática da Ação Caritativa como sua Missão Salvífica de todo o Povo de Deus. Essa prática pastoral ainda perdura e afeta a missão eclesial.
Estas, porém, são as verdadeiras coordenadas pastorais de toda a Igreja e de quem é eleito Bispo de Roma. E não haverá retrocesso. O dinamismo e a Força do Espírito revelam-se na prática do Bem e do Entendimento sobre as melhores respostas pastorais em cada momento da História, sinal de que a Caridade para com “Todos, todos, todos” é a Alma da Igreja.
PS: Este texto foi escrito antes da eleição do Papa Leão XIV. É sintomático que ele tenha escolhido um nome que recorda a importância do Papa da encíclica “Rerum Novarum” , marco relevante da Doutrina Social da Igreja na História contemporânea.
iJoão Paulo II, “Carta Encíclica A Solicitude Social da Igreja”, nº1, Rei dos Livros, 1988
ii “Compêndio do Vaticano II”, Editorial Vozes, 2ª edição, 1968
José Gabriel Ávila*
*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com