O Chega não é apenas um fenómeno político – é, cada vez mais, um sintoma. Um sintoma do desgaste da democracia, da desconfiança nas instituições, e sobretudo da descrença na política como serviço público. E se há algo em que o partido de André Ventura tem sido eficaz, é em agravar precisamente essa desconfiança. O seu discurso é uma máquina constante de deslegitimação: tudo é suspeito, tudo é corrupto, todos são iguais – menos eles.
O Chega vive da ideia de que os políticos não prestam, os partidos não prestam, o sistema não presta. Mas a grande ironia é que hoje são 58 deputados (podendo ultrapassar este número e tornar-se o líder da oposição ultrapassando o Partido Socialista) deputados – 58 políticos – com dezenas de assessores, equipas, nomeações e cargos pagos pelo erário público. O partido que diz combater o “sistema” está, neste momento, profundamente instalado nele. E, ao contrário do que muitos ainda pensam, não vai desaparecer. Está estruturado, tem financiamento, tem quadros intermédios e um aparelho cada vez mais profissional. André Ventura veio para ficar. E com ele, a seita que o segue.
Porque, sim – há uma dimensão quase messiânica no culto de Ventura. A campanha permanente, o vitimismo estratégico, o uso sistemático da linguagem emocional e das imagens de perseguição criam um ambiente de adoração que escapa à lógica racional. Fiquei estupefacto ao ouvir recentemente um cidadão na televisão comparar Ventura a Sá Carneiro – e, ainda mais grave, dizer “espero que não lhe façam o que fizeram ao Sá Carneiro”. Esta frase, para além de irresponsável, é reveladora de algo muito perigoso: a transformação de um político em mártir antecipado, quase profeta intocável. Isto não é política. Isto é fanatismo.
E o fanatismo, quando entra no Parlamento com 58 deputados, já não é apenas um risco retórico – é uma ameaça institucional. Não se combate o Chega com gritos, nem com moralismos tardios.
Combate-se com política séria, com transparência, com líderes que inspirem respeito. Porque cada vez que se diz que “são todos iguais”, o Chega cresce. E cada vez que um político abandona o espaço público por cansaço, medo ou vergonha, o Chega agradece.
Servir a democracia tem de continuar a ser uma honra, um privilégio, um ato de responsabilidade.
Meter todos no mesmo saco – como o Chega faz sistematicamente – é perigoso. Não só porque descredibiliza o sistema, mas porque destrói a única coisa que nos pode defender dele: a confiança num regime democrático feito por pessoas imperfeitas, sim, mas que estão (ou deviam estar) ao serviço do bem comum.
O Chega não é só André Ventura, mas também ainda não é muito mais do que ele. E isso, por agora, é o que impede o seu crescimento final. Mas o tempo joga a seu favor. Se os partidos democráticos não aprenderem depressa a reconquistar a confiança das pessoas, não se espantem quando o populismo deixar de ser grito e se tornar lei.
Eduardo Miguel Silva*
*Advogado