Depois do verdadeiro terramoto político provocado pelos resultados das legislativas nacionais, em que os cidadãos manifestaram de forma inequívoca o seu desagrado com as instituições e com a perpetuação do status quo, a melhor forma encontrada pelo parlamento regional para responder a este sinal de alarme social foi a de cancelar a sessão plenária ordinária de Maio. Um gesto que, embora tenha passado quase despercebido, merece reflexão atenta. Não se trata apenas da suspensão de uma sessão legislativa, mas de mais um sintoma de uma patologia institucional crónica: o alheamento progressivo de quem devia representar os açorianos e a inquietante banalização do desrespeito pelas instituições democráticas.
É certo que o nevoeiro causou atrasos e impediu a obtenção de quórum, mas seria intelectualmente desonesto atribuir-lhe a total responsabilidade. Havia alternativas possíveis e, havendo vontade política teria-se encontrado solução. A verdade é que a ordem de trabalhos era francamente pobre, e muitos senhores deputados estiveram demasiado ocupados com a deprimente campanha eleitoral. Alguns, pelo menos. Porque outros deixaram os seus candidatos ao abandono e assumiram, sem pudor, verdadeiras férias.
Num momento em que a Região enfrenta desafios económicos sérios e uma crise brutal na habitação, com o custo de vida a sufocar as famílias, as empresas desesperam pelo cumprimento das obrigações do governo regional. Paralelamente, o SRS encontra-se em absoluta roda livre e, mais grave ainda, assiste-se a uma preocupante crise de confiança nas instituições, a principal casa da democracia açoriana opta pelo adiamento. Como se a política pudesse parar porque não há vontade, porque o calendário não agrada ou porque os acordos de bastidores não estão fechados. Isto não é apenas mau sinal. É perigoso e a pior resposta possível aos resultados das legislativas nacionais de 18 de Maio.
A política autonómica vive há anos um défice de credibilidade. As taxas de abstenção sucessivas mostram uma sociedade desinteressada e desconfiada. E esse desinteresse não nasce do nada. É alimentado por episódios como este, em que os representantes eleitos decidem que não vale a pena reunirem-se. Não porque a Região esteja bem, não porque os assuntos estejam resolvidos, mas porque, para eles, não há agenda que justifique o incómodo de prestar contas e trabalhar.
É também profundamente incoerente que os mesmos que, de cada vez que têm oportunidade, clamam por mais autonomia e mais respeito de Lisboa, sejam incapazes de respeitar as suas próprias instituições. A autonomia não se constrói em comunicados de imprensa ou em discursos inflamados contra a República centralista. Constrói-se na prática quotidiana, no exercício responsável do mandato, no debate de ideias, na fiscalização ao Governo e na produção de legislação que melhore a vida dos açorianos.
Quando um parlamento decide não trabalhar, está a desvalorizar o próprio conceito de representação democrática. Está a normalizar a ideia de que a política é um espaço onde se pode falhar sem consequências, onde se pode ignorar os problemas das pessoas sem pagar um preço político. E esse ambiente é terreno fértil para o crescimento de discursos populistas e anti-sistema, que se alimentam da falência dos regimes democráticos tradicionais.
É preciso dizer isto com clareza: não há autonomia sem responsabilidade. Um parlamento regional forte é aquele que funciona com regularidade, que debate os temas importantes, que obriga o Governo a explicar-se e que produz soluções. Se não for assim, seremos apenas um enclave político, com autonomia formal e irrelevância real.
A democracia não se pode dar ao luxo de tirar férias. E muito menos numa região onde os problemas se acumulam e onde os cidadãos merecem a certeza de que quem os representa trabalha por eles. O cancelamento da sessão legislativa de Maio é mais do que um episódio menor. É um sinal perigoso de laxismo institucional. E se a sociedade civil não reagir, será mais um passo na erosão lenta da nossa Autonomia. Os Açores merecem mais e melhor.
André Silveira