“Durante décadas, a Região Autónoma dos Açores negligenciou a construção de uma política séria e consequente para a prática desportiva e promoção de estilos de vida ativos.”
A recente notícia de que metade das crianças do primeiro ciclo nos Açores apresenta excesso de peso constitui um sinal alarmante, revelador de uma crise de saúde pública de enorme gravidade. É, provavelmente, a mais grave ameaça à saúde pública da Região para as próximas décadas. E, ao contrário do que muitos parecem querer acreditar, este problema não se resolve com campanhas esporádicas ou palavras simpáticas sobre “estilos de vida saudáveis”. O tempo das boas intenções já passou. É tempo de política pública eficaz.
A obesidade infantil é hoje reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como uma verdadeira epidemia. Estima-se que mais de 39 milhões de crianças menores de 5 anos no mundo estejam acima do peso recomendado, número que cresce de forma preocupante nas regiões economicamente mais frágeis, onde a desinformação, os hábitos alimentares inadequados e o sedentarismo fazem estragos silenciosos. Nos Açores, a situação é ainda mais grave pela conjugação de fatores estruturais, culturais e políticos. Estarmos próximos de indicadores típicos de países do terceiro mundo , antes de mais deve-nos envergonhar, e deve ser motivo de profunda preocupação e de uma ação política corajosa e pragmática, orientada para inverter este cenário de forma estruturada e sustentada.
A gravidade da situação açoriana foi recentemente confirmada pelo estudo do projeto RUSH, publicado há dias, que avaliou 2681 crianças do 1.º ciclo do ensino básico em Portugal, incluindo 1408 crianças açorianas. Os resultados são particularmente preocupantes para a Região: 49,1% das crianças açorianas apresentam excesso de peso, valor substancialmente superior à já imensamente preocupante média nacional de 44,1% e muito acima das referências europeias e globais. Mais grave ainda, nos Açores, a prevalência de obesidade dispara a partir dos 7 anos, atingindo níveis que chegam a ser quase o dobro das médias nacionais em certas idades. As crianças açorianas são, de forma sistemática, menos aptas fisicamente do que os seus pares do continente e do resto da Europa, evidenciando que o problema na Região não é apenas grave, é crítico e estrutural. Este estudo reforça, com dados objetivos e atuais, aquilo que muitos técnicos e educadores já sabiam de experiência direta: as crianças açorianas estão a pagar, em saúde e qualidade de vida, o preço de décadas de ausência de políticas públicas eficazes de promoção da atividade física e literacia alimentar. É, por isso, imperativo agir com urgência.
As consequências da obesidade infantil vão muito além do presente. No médio e longo prazo, estas crianças terão maior propensão a desenvolver doenças crónicas como diabetes tipo 2, hipertensão arterial, problemas osteoarticulares e diversas patologias cardiovasculares, com um impacto direto na diminuição da esperança de vida e na qualidade de vida. Para os sistemas de saúde, este cenário traduz-se num aumento exponencial dos custos com cuidados médicos, tratamentos prolongados e absentismo laboral, comprometendo também a produtividade e a sustentabilidade financeira dos serviços públicos. Ignorar este problema hoje significa garantir um fardo social e económico pesado para as próximas décadas.
Durante décadas, a Região Autónoma dos Açores negligenciou a construção de uma política séria e consequente para a prática desportiva e promoção de estilos de vida ativos. Limitou-se a apoiar clubes e associações, muitas vezes com critérios discutíveis, e a organizar eventos pontuais que em nada mudam o paradigma de base. Não existe uma estratégia para integrar o desporto e a atividade física como instrumentos centrais de política de saúde e de desenvolvimento social. E os resultados estão à vista.
É urgente assumir que o combate à obesidade infantil só será eficaz se assentar em dois eixos fundamentais: a promoção de literacia nutricional e a implementação de uma política estruturada de atividade física desde a primeira infância.
Por um lado, a literacia nutricional deve começar de forma sistemática muito antes da entrada para o ensino básico. É relevante recordar que, por exemplo, a taxa de aleitamento materno exclusivo até aos seis meses nos Açores é consideravelmente inferior à média nacional, um indicador preocupante que evidencia fragilidades logo nos primeiros meses de vida e condiciona o percurso nutricional subsequente. As famílias açorianas, frequentemente marcadas por contextos socioeconómicos desfavoráveis e baixa literacia em saúde, enfrentam limitações de acesso a informação qualificada sobre alimentação equilibrada, leitura de rótulos, e a importância de evitar alimentos ultraprocessados. Uma criança que cresce habituada a consumir refrigerantes e produtos industrializados, sem referências de alimentação adequada, carrega desde cedo um risco acrescido de desenvolver patologias crónicas, comprometendo a sua saúde e bem-estar ao longo da vida.
Por outro lado, a atividade física deve deixar de ser vista como um complemento ou passatempo. Deve ser integrada como pilar central da educação e da saúde pública. A política de promoção da atividade física tem de começar no pré-escolar, com programas de motricidade infantil e recreação orientada. E deve prolongar-se, com crescente exigência, ao longo do ensino básico e secundário.
O desporto escolar deve ter um papel estruturante nesta estratégia. Não apenas enquanto atividade lúdica, mas como ferramenta educativa, social e de promoção de saúde. Isso implica dotar as escolas de equipamentos desportivos adequados e bem mantidos, um problema crónico em muitas unidades escolares da Região, e investir na formação contínua de professores de educação física e técnicos especializados. Sem recursos humanos qualificados e motivados, nenhum plano resistirá ao desgaste da rotina. Acresce que a autonomia curricular de que a Região dispõe poderia , e deveria , ser utilizada para apostar decididamente na Educação Física como disciplina estruturante, permitindo aumentar a carga horária, adaptar os conteúdos à realidade açoriana e introduzir programas específicos de combate à obesidade infantil, à semelhança de boas práticas internacionais.
A competição desportiva, muitas vezes desvalorizada em nome de um igualitarismo mal compreendido, deve também fazer parte da solução. O desporto competitivo amador, quando bem enquadrado, promove disciplina, superação, espírito de equipa e hábitos saudáveis. É um fator de inclusão social e de combate a fenómenos como o abandono escolar e a delinquência juvenil. E é, sobretudo, uma escola de valores.
Investir no desporto e na promoção de estilos de vida saudáveis não é uma despesa. É, antes, a mais sólida das aplicações para o futuro. Os ganhos serão múltiplos: melhoria da qualidade de vida da população, redução das taxas de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e outras patologias associadas à obesidade, poupança em cuidados de saúde e aumento da produtividade.
O Governo Regional dos Açores deve, por isso, colocar este tema no topo da sua agenda política. Deve aprovar um plano regional de combate à obesidade infantil, com objetivos claros, indicadores de desempenho e financiamento adequado. Deve envolver as autarquias, as escolas, os clubes, as associações de pais e as unidades de saúde. E deve assumir, sem complexos, que a situação atual é inaceitável e exige medidas de fundo. Deveria, inclusivamente, ponderar a declaração do estado de calamidade regional no domínio da saúde pública para fazer face a tão destrutivo destino.
A pandemia de Covid-19 trouxe sofrimento e desafios a todos nós, mas é tempo de reconhecer que a pandemia da obesidade, em particular da infantil, terá efeitos mais prolongados, mais devastadores e muito mais dispendiosos. A diferença é que esta, ao contrário da outra, pode ser prevenida. Basta vontade política, visão estratégica e coragem para romper com décadas de inércia.
Se não o fizermos agora, pagaremos todos, e as próximas gerações ainda mais. Os Açores merecem mais e melhor.
André Silveira