Cirillus Rafts entrou em passo lento na galeria que expunha a sua mais recente criação: telas de grandes dimensões com muitas disformidades, amontoados de corpos humanos, deuses, animais, elementos dispersos da natureza que se dobravam e contorciam, ramificando em outras entidades, um interlúdio sem conexão lógica, num tom extasiante e visualmente expressivo. Cada tela repetia ou retomava as anteriores, formando uma grande bolha de ideias e pensamentos uniformes, política e socialmente perturbadores. No fundo, o autor sabia do valor e da experiência que o trouxeram até ao presente e a sua obra apenas queria refletir esse acumulado de experiências e histórias perdidas no espaço da sua memória.
Rafts sabia bem como explorar os medos e as perplexidades do homem moderno!
Feitas as formalidades de se apresentar e se deixar apresentar a mais de uma centena de pessoas que permaneciam de pé sem grande expressão e sem qualquer tipo de sex-appeal, Cirillus penetrou lentamente por entre a multidão que se acumulava nos diversos salões da galeria. Em vão, quis saber dos filhos, se teriam vindo à inauguração, tal como prometido na véspera, via telefone, já perto da meia-noite. Brian Rafts, 34 anos, andrajoso e refugiado num bosque perto da cidade, vivendo numa cabana de madeira, ajudando os donos da quinta em troca de comida e algum dinheiro; Burt Rafts 32 anos, que culpava a namorada por tê-lo afastado do pai; e, por último, Brenda Rafts, uma adolescente de 26 anos, diríamos rebelde e complicada, que odiava a obra do pai, e que num tempo não muito distante tentara lançar tinta verde nas obras e em todo o estúdio, onde se reuniam para mais de 100 obras com assinatura Rafts.
Os Rafts, como eram conhecidos em toda a metrópole, nunca foram de grandes chiquezas, sempre aparentaram um estilo de vida pequeno burguês, frugal e austero, de horizontes modestos, pelo menos até Cirillus começar a faturar a sério com a sua obra plástica. Mas a partir do presente, quando o dinheiro entrou abundantemente através de contratos consideráveis, os filhos aproximaram-se timidamente. O senhor Rafts, no seu estilo de artista, mas nunca amolecendo a defesa de pai-sentinela, sempre foi dizendo: “Se querem o meu dinheiro, terão de se tornar pintores, tal como eu.”
Luís Soares Almeida