Edit Template

O Génio de Gaspar Frutuoso

Um dos meus ídolos literários portugueses é o nosso Gaspar Frutuoso. Não pela sua prosa, muitas vezes enfeitada de maneirismos renascentistas desnecessários, mas pela sua incrível e maníaca dedicação ao trabalho de campo. É quase inacreditável o nível de detalhe que atinge na sua “enciclopédia atlântica” o monumental Saudades da Terra. Consigo imaginá-lo de chinelo mete-dedo, com o faro de um detetive de filme noir, a revirar todos os pergaminhos, manuscritos e beatas faladoras, para, com engenho e suor, montar esta coleção verdadeiramente incrível da história da Macaronésia. Uma verdadeira investigação à escala oceânica! Da minha parte, especial carinho para o volume IV, a bíblia micaelense. É aí que Gaspar Frutuoso atinge o auge da sua mania transcendente, descrevendo com detalhe família por família, vila por vila, nome por nome: de onde vieram, como se chamavam, com quem casaram e por que raio a Relva se chama Relva e a Covoada, Covoada. Pequeno spoiler para quem ainda não leu o livro: o termo “covoada” designava lugares cheios de covas, buracos e depressões, tendo esta freguesia adquirido o seu nome devido à presença de matos com “covoadas” de árvores. Estas características faziam com que o vento não afetasse a freguesia vizinha, que era conhecida pelos seus “campos cobertos de relvas viçosas e frescas”, característica deu origem ao topónimo da freguesia da Relva.
Vamos recuar um pouco. Antes de se tornar o santo padroeiro dos curiosos e patrono dos jornalistas de investigação, sendo, muito provavelmente, antepassado da Sandra Felgueiras, Gaspar Frutuoso foi um homem de carne e osso. Nasceu em 1522, na Ribeira Grande, nos primórdios do povoamento da ilha de São Miguel. Estudou em Salamanca, que, para contextualizar, no séc. XVI, era o equivalente a uma Harvard. Um epicentro de conhecimento que fervilhava com o advento do humanismo renascentista, discussões filosóficas, teologia e ciências naturais. Entre padres, poetas, astrónomos e hereges q.b., este jovem micaelense mergulhou nos livros da extensa biblioteca da Universidade emergindo com um bacharelato e doutoramento em artes e teologia, lendo Plínio e Heródoto com o mesmo afinco que um açoriano esfomeado lê a ementa do Mané Cigano. Salamanca deu-lhe método, disciplina e convicção que o levaram a ser um grande investigador, desbravando e decifrando um mundo onde o conhecimento era fragmentado e escasso, onde cada detalhe histórico necessitava de uma procura intensa e exaustiva. Logo de seguida foi ordenado padre, e partiu para uma incrível vida de trabalho incansável, carregando consigo a característica singular que é padrão em todos os génios: a curiosidade. Caro leitor, se ainda não conhece a obra de Gaspar Frutuoso, faça um favor a si próprio e trate disso. Aliás, para adquirir o passaporte açoriano devia ser obrigatório ler Saudades da Terra, assim como, ir na procissão do Santo Cristo e apitar no túnel da Ribeira Quente. É a certidão de nascimento das nossas ilhas, onde todos os pormenores do descobrimento, povoamento e até fofoquices são apresentados e esmiuçados, dando ao leitor uma perspetiva verdadeiramente avassaladora da realidade que foi transformar um arquipélago deserto e auspicioso na nossa jangada atlântica paradisíaca. Gaspar Frutuoso é o nosso cronista supremo, que conseguiu cartografar a alma açoriana com uma devoção doentia ao detalhe. Veja lá, até fala na alforra e como este fungo afetava as primeiras tentativas de cultivo de trigo.
A vida adulta do nosso padre historiador foi passando entre o altar e o arquivo. Depois de regressar dos seus estudos, instalou-se na Ribeira Grande, onde viveu até à sua morte. Pároco, confessor, conselheiro e historiador obsessivo. Portugal vivia o seu drama onde a expansão imperialista começava a dar sinais de fadiga. D, Sebastião perdia-se por Alcácer-Quibir, dando início aos filipinos malfadados, que deixaram as nossas ilhas esquecidas no meio de um vasto império. Mas a memória açoriana teimou em ser escrita em pedra na maravilhosa obra de Gaspar Frutuoso, que não era uma epopeia de reis nem conquistas, mas de gente simples, lavradores e marinheiros, famílias que com estoicismo insular ergueram no meio do atlântico a nossa casa, carregada de defeitos, mas adornada de beleza.
Carrego com orgulho a minha cópia em pdf de Saudades da Terra, estando plenamente ciente de que, para alcançar o tão almejado estatuto de pseudo-intelectual açoriano, preciso urgentemente de uma cópia física do manuscrito. Foi, portanto, com entusiasmo que, em 2022, descobri que a editora Letras Lavadas iria lançar uma edição de luxo da obra. Infelizmente, esse entusiasmo traduziu-se num dos maiores faux pas da minha existência. Desloquei-me à livraria onde o livro fora lançado, meros dias tinham passado do seu lançamento, e anunciei aos presentes com enorme projeção vocal, de forma a informar o meu eruditismo: “Pretendo adquirir a edição de luxo do Saudades da Terra!”. Do outro lado do balcão “São 250 euros”. Lembro-me do primeiro pensamento que me veio à cabeça: “Isso dá 250 finos!” A maldita inflação já tratou de descredibilizar essa comparação, mas temo que também tenha intervindo no preço do livro. Confesso que me acobardei da compra. Recuei, arrastando a minha dignidade entre os livros expostos. Desde então sou assombrado por essa decisão. Está na hora de corrigir o erro. Que se lixe a cerveja! Caro leitor, fazemos assim você promete que o lê, e eu prometo que o compro!

Philip Pontes

Edit Template
Notícias Recentes
José Manuel Bolieiro reforça diálogo com a União Europeia em encontros de alto nível
Titulares do Cartão Interjovem com viagens aéreas interilhas a 21 euros durante o mês de Dezembro
Azorean International Film de 13 a 21 de Dezembro no Teatro Micaelense
Número de pensões aproxima-se das 50 mil e reforça peso social da velhice nos Açores
PJ assinala 80.º aniversário em Ponta Delgada com debate sobre drogas sintéticas
Notícia Anterior
Proxima Notícia

Copyright 2023 Diário dos Açores