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Entre deputados interinos e presidentes acumuladores

Há expressões que parecem feitas de propósito para Portugal. “Revisão urgente da legislação”, por exemplo, soa sempre bem, mas raramente acontece. E quando acontece, é porque já não havia volta a dar. Pois bem, chegou a altura de alguém o dizer sem rodeios: urge rever a legislação que regula o exercício e a acumulação de cargos políticos. Não por capricho, mas por respeito à democracia e à transparência, que andam a precisar de uma boa revisão geral, talvez até de inspeção técnica periódica.
Comecemos pelo básico. As regras que definem as limitações para ocupar certos cargos, sejam deputados da República (Lei n.º 7/93, de 1 de março, conhecida como Estatuto dos Deputados) ou deputados regionais (Decreto Legislativo Regional n.º 22/2000/A, de 9 de agosto, que aprovou o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores), estão velhas, cansadas e a cheirar a mofo. O problema é que, desde a sua aprovação, foram remendadas aqui e ali, mas nunca revistas com a seriedade e profundidade que a democracia exige. Resultado: criaram-se brechas suficientes para que a “ética política” se tornasse um conceito elástico, à medida da conveniência de cada partido.
Um dos exemplos mais gritantes é o das substituições de deputados a meio de uma legislatura. A lei permite que um deputado democraticamente eleito possa ser substituído por outro, desde que haja justificação formal, por doença, por renúncia ou por impedimento. Mas o que vemos, demasiadas vezes, é o uso estratégico dessa figura para “dar palco” a quem o partido quer promover. De repente, um deputado sai “por vontade própria” (às vezes mais própria do partido do que dele) e entra outro que, por mera coincidência, será candidato a uma Câmara Municipal ou a uma Junta de Freguesia nas próximas eleições.
Chamem-me ingénuo, mas julguei que os lugares no parlamento, regional ou nacional, eram para representar o povo e não para ensaiar futuros candidatos em palco mediático. Quando a democracia se transforma num teatro onde o guião é escrito pelos diretores partidários e os atores mudam conforme a conveniência, deixamos de ter uma Assembleia e passamos a ter uma antecâmara eleitoral.
E já que falamos em ética e coerência, também seria altura de discutir outra questão: a de permitir que alguém eleito para um cargo possa simplesmente abdicar dele para dar lugar ao “segundo da lista”. A democracia é feita de escolhas, e quem é eleito tem o dever de respeitar a vontade dos eleitores, mesmo que o partido ache mais útil redistribuir as cadeiras para equilibrar forças. Caso contrário, transformamos o voto popular num cheque em branco que o partido preenche conforme lhe dá jeito.
Outro ponto que não devia continuar a ser tratado como “normal” é a acumulação de cargos. Não é ético que um presidente de junta de freguesia seja, ao mesmo tempo, deputado, seja regional ou nacional. Por muito que se diga que se “separam as águas”, a verdade é que, em política, a maré sobe sempre mais depressa para quem está mais próximo do poder. E não é difícil perceber a injustiça: enquanto uns presidentes de junta esperam meses por uma resposta ou um despacho, outros, por coincidência, já estão sentados à mesa onde as decisões se tomam.
E, para terminar, deixo uma última sugestão de revisão legislativa: impedir que vereadores de executivos camarários em funções, e que já atingiram o limite de mandatos, possam candidatar-se logo de seguida a presidentes de câmara. É um truque há muito usado para prolongar o domínio de um partido sobre um município, mudando apenas o nome no cartaz. O rosto muda, o poder mantém-se. E depois perguntam-se por que razão o eleitorado anda descrente.
Na política, como na vida, há que saber sair de cena. O poder não é um direito vitalício, nem uma herança partidária. O verdadeiro progresso político faz-se com renovação, com novas ideias e novos rostos. E se a democracia é uma casa de todos, está mais do que na hora de fazer umas boas obras, antes que nos caia o teto em cima.

Carlos Pinheiro

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