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Reflexões sobre os efeitos dos pesticidas no mundo rural

Ainda vamos chorar pelas lesmas e caracóis

Já reparou que as lesmas e os caracóis desapareceram dos nossos jardins e hortas? O que parece um simples pormenor da natureza esconde um problema ambiental muito mais sério do que imaginamos.
Na minha freguesia, que até é bastante isolada, é cada vez mais raro ver-se estes pequenos moluscos. Os muros húmidos e os canteiros que antes mostravam rastos prateados estão agora “limpinhos”. E isto é triste e preocupante.
Este desaparecimento pode estar ligado ao uso excessivo de pesticidas nos campos à volta da freguesia. As terras continuam verdes, é verdade, mas a que preço? Estes produtos químicos, usados para eliminar pragas e ervas daninhas, acabam por atingir também outros seres frágeis, como as referidas lesmas e caracóis, mas também muitos outros animais, incluindo microrganismos (que não se veem, mas são igualmente essenciais para o equilíbrio do ecossistema). São vítimas silenciosas de uma agricultura que privilegia a produtividade em detrimento do equilíbrio natural.
Curiosamente, enquanto nos falam de “destinos turísticos sustentáveis” e são investidos milhões em selos ecológicos, os campos continuam a ser tratados com as mesmas fórmulas químicas de há décadas. É o lado obscuro da sustentabilidade, a parte que não cabe nos folhetos nem nas campanhas.
Acrescente escassez destes animais é mais do que uma curiosidade: é sinal de que o ecossistema está enfraquecido. E não é preciso ser biólogo para perceber que as lesmas e os caracóis fazem parte de uma cadeia alimentar essencial: servem de alimento a aves e outros animais, e ajudam a decompor a matéria orgânica, devolvendo nutrientes ao solo. Sem eles, o solo perde fertilidade, a vida diminui e o ciclo natural fica comprometido.

Não é só o que se (não) vê
O problema não fica apenas nos campos de cultivo nem, sobretudo, nas pastagens. A chuva arrasta os resíduos dos pesticidas para as ribeiras e, daí, para o mar. Por isso, o impacto local transforma-se num problema mais global.
Estudos científicos, como o de M.H. Depledge1 sobre os ecossistemas costeiros dos Açores – publicado há mais de 30 anos, mas tristemente atual, pois a situação só tem piorado, a olho nu –, mostram que os químicos agrícolas têm afetado seriamente a vida marinha. Algas, moluscos e peixes, todos têm sofrido as consequências, vendo alteradas as suas funções vitais e capacidade de reprodução.
Os pesticidas alteram o equilíbrio dos nutrientes nas águas costeiras, favorecendo o crescimento descontrolado de algas nocivas e reduzindo o oxigénio da água. Este processo, chamado eutrofização – já com consequências muito sérias em muitas das nossas lagoas e com custos elevadíssimos para todos nós –, cria “zonas mortas”, onde a vida aquática desaparece por completo.

Existem soluções
Será que o progresso justifica o desaparecimento silencioso de tantas espécies? Talvez seja tempo de repensar a forma como cultivamos e cuidamos da terra. Precisamos de entender melhor o que está a acontecer e as universidades e centros de investigação devem intensificar o estudo rigoroso do impacto dos químicos nos ecossistemas terrestres e marinhos dos Açores.
Mas também precisamos que quem decide políticas públicas olhe para o território real — aquele onde muitos seres vivos estão a desaparecer — e não apenas para os relatórios que brilham nas conferências internacionais. E que financie a necessária conversão estrutural de toda a economia rural.
Felizmente, existem caminhos melhores. A agricultura biológica e integrada já mostrou que é possível produzir de forma sustentável, protegendo a biodiversidade. A redução do uso de químicos, a criação de corredores ecológicos e a rotação de culturas são medidas que ajudam a restaurar o equilíbrio natural.
Proteger as lesmas, os caracóis e tantos outros animais, como, por exemplo, as joaninhas, é, afinal, proteger a vida em todas as suas formas. O futuro dos nossos campos, ribeiras, lagoas e oceano depende de uma relação mais respeitosa com a natureza. E, acima de tudo, de políticas que cuidem verdadeiramente do que está vivo e não apenas daquilo que é certificado.
O que desaparece em silêncio hoje vai fazer muita falta amanhã.

1M.H Depledge, J.M Weeks, A Frias Martins, R Tristão da Cunha, A Costa, The Azores Exploitation and pollution of the coastal ecosystem,Marine Pollution Bulletin,Volume 24, Issue 9,1992,Pages 433-435,
ISSN 0025-326X,https://doi.org/10.1016/0025-326X(92)90341-3.

Nota – Uma agradecimento especial ao enfermeiro/biólogo Bruno Brum pelo incentivo e contributo.

Luís Silva

*Fazedor de coisas

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