1 - anedotas velhas - “plantar ideias e semear Ideais...”
… creio que muitos pontadelgadenses (com a memória mais fresca) ainda se lembram do viver pachorrento e rotineiro do seu burgo. Naquele tempo (será ainda hoje assim?) o oficio de bem-dizer mal do alheio era o mais apreciado capital do escárneo oficial exigido aos figurantes da tragi-comédia local.
Hoje em dia, desconfio que é preciso ser aceite como “intocável” na confraria da mediocridade cívica da vitrine oficial. Afinal, os grandes “perdedores” da autonomia politica foram (e são?) aqueles que um dia sonharam que o “ilhéu” açoreano, uma vez libertado da sua insularidade psico-geográfica, poderia eventualmente resistir à promiscuidade do delírio consumista. Enfim - (o)dores da Pobreza.
Prezados conterrâneos e camaradas, em verdade vos digo: em Outubro/1980 (44 anos em breve) decidi atravessar o rio Atlantico Norte, sem bater a porta na cara de ninguém (apenas com os olhos húmidos)...
Recordo a propósito (Abril/1981) o comentário feito por um dos honrados adversários politicos da época (que nunca deixou de ser amigo), numa sensibilizante visita à nossa casinha de Fall River, sim, no tempo em que o signatario era um dos operários fabris da comunidade industrial da fronteira oriental, sempre atento aos “dizeres’ da comunidade micaelense”:
João Luis - estou convencido de que a tua vinda pr’ós United States foi um descanso de cabeça para muitos assalariados politicos do “teu” Partido.
2 – algumas anedotas são consideradas parentes do pranto (?)
Porventura intrigados pela previsibilidade do comportamento dos individuos, acontecia que as “almas” bem-ensinadas do burgo pontadelgadense eram por vezes sacudidas pela divertida inconveniência das palavras e atitudes dos tais “repentistas” ocasionais; sim, os tais que faziam gala da irreverente marginalidade do seu temperamento; gente que, na via pública, berravam inconveniências àcerca da piedade piegas das beatas; incomodavam a ladroagem bem-falante dos comerciantes sem ética; mangavam da ignorância da doutoraça local, e de outras coisas julgadas menores, tais como: São Miguel importava salsa e que Santa Maria recebia alfaces por avião…
Para colorir um pouco a monotonia insular, bastaria recordar o (mau) exemplo daqueles indivíduos que, aparentemente, não eram capazes de manifestar a sua repulsa pela hipocrisia social do seu tempo (a não ser através da comicidade duma confrontação estéril).
Enfim, gente da nossa gente, civicamente abandonada pela inquietação ingénua de transplantar nas mãos macias da fidalguia os calos honrados do trabalho. Numa palavra: gente muito, muito infeliz que em vez de bradar por justiça, optava por imitar o palhaço a gritar por socorro; gente que acreditava que o milagre de criar riqueza para todos não diferia muito daquele de suprir a falta d’água: bastaria alargar a ponta das mangueiras…
3 – Lembram-se do Evaristo “Caldinho”, de São Roque?
Até parece que estamos ainda a olhar o perfil e a ouvir a voz do tio Evaristo “Caldinho” (analfabeto simpático), dotado de fenomenal memória audio-visual. De certa feita, num fim de tarde de verão, no Largo do Poço Velho, ti Evaristo quiz impressionar atenção dum grupo de vizinhos que, incrédulos, o escutavam na “leitura” de uma página inteira da Bíblia.
Não! Não podia ser. O homem era reconhecidamente analfabeto. E vai daí um dos literatos do grupo ofereceu-se para testar o fenómeno. Todavia, o tio Evaristo repetiu a leitura sem uma única falha! Algumas vozes já murmuravam entre si:
- Eh home! Tá calado: não sejas descrente... sabes onde Nosso Senhor aprendeu a ler?
(Entretanto, mais tarde, o grupo ficou sabendo que o ti Evaristo Caldinho tivera o paciente e exaustivo cuidado de ouvir, repetidamente, na tarde anterior, a leitura daquela página biblica, feita por pessoa amiga conhecedora do seu dorido desgosto em ser analfabeto.)
Se bem que deveras minguado no saber literário, Ti Evaristo “Caldinho” era um repentista corajoso, polemista espirituoso, embora nem sempre politicamente oportuno. Aquando da inauguração da “Casa das Pias”, em meados da década de 50, em São Roque - (freguesia que vai cumprindo o seu destino como limite oriental de Ponta Delgada) - deu-se um episódio que ainda hoje poderá ter algum interesse sociológico em ser calmamente revisitado. Vejamos: no momento da cerimónia pública em que um dos oradores já ia em “passo de ganso” paternalista do seu discurso, afirmando os tais lugares-comuns da praxis:
“… nosso Senhor dá a pobreza mas também dá a limpeza…”
Ora, da rectaguarda da moldura humana da assistência ouve-se alguém bradar numa voz que nos pareceu oriunda duma garganta humana que supostamente começara a ser amordaçada:
“…corja de comilãs! corja de comilãs! pias pr’a lavá?”
Premêro, pã! Sim pão, pobreza não tãm roupa pr’a lavá…”
A voz era inconfundível. Dali em diante, sempre que algum dignatário visitava a freguesia, consta que “tio” Evaristo “Caldinho” era prudentemente guardado à distância conveniente do local do evento...)
4 – haverá quem se lembre do micaelense “Penacho”?
O ti “Penacho” foi talvez uma das mais tristemente destacadas figuras do anedotário colectivo da “baixa” citadina, na década de 50. Não era conhecido por nome de baptismo. Nunca foi visto com roupas ou botas condizentes com a sua mirrada estatura fisica. Continuou a existir até ao momento em que os pulmões e o fígado se zangaram com ele, quase ao mesmo tempo, devido ao fumear das beatas que ia poupando e à fermentação da cachaça e do vinho-abafado que lhe serviam de ementa habitual.
Para proceder à recolha dos desperdícios para a engorda de suinos, a sua carroça de burro era presença assídua, por vezes inoportuna, comprensivelmente fedorenta, junto dos cafés e restaurantes da baixa da cidade.
Curiosamente, Penacho tinha muita proa na farda cinzenta que ostentava o emblema do albergue; sobretudo, no inseparável “quépi” (talvez perdido por algum distraído militar estrangeiro, nos anos 40).
Repentista inato e provocador atrevido, reza a lenda que os ladrilhos da entrada da regional estavam lisos e escorregadios devido às botas do Penacho, nas suas repetidas “chamadas à polícia”.
Ficou na memória local a seguinte cena acontecida na estreita mas sempre movimentada Rua dos Mercadores, em Ponta Delgada. Naquele fim de tarde, Penacho já “quentinho” ia vagarosamente ao comando da sua carroça de burro, na circunstância sobrecarregada de “lavagens” para os seus queridos “porquinhos”. A lentidão da sua marcha complicava a vida ao trânsito que se lhe seguia. Ademais aquela desgraçada carroça arrastava consigo um cheiro pouco atraente aos oficiais que viajam numa reluzente viatura militar...
Ó diabo, iam chegar atrasados e mal-cheirosos à recepção que lhes aguarda no Hotel São Pedro…
... de repente um jovem alferes fardado a rigor salta para a calçada, e numa voz de comando cujo sotaque continental toda a ilha conhecera dez anos antes, ordena ao ti Penacho:
- Eh pá! Limpa já essa porcaria da nossa frente!
Foi então quando o diálogo aconteceu à queima-roupa. Penacho não era gago:
- Que é?Tans pressa? Que fome é essa? Isso é só pr’ós meus porcos …
Não era difícil reparar que o jovem oficial não estava a gostar daquele falar…
- Olha lá pá: sabes com quem falas? conheces esta farda?
Claro que o Penacho também não achara graça ao arrogante linguajar do jovem alferes. Depois de aclarear a garganta do amargo da aguardente que há pouco engulira na loja do Zé Borges, e antes que um dos policiais lhe chegasse à beira, encheu o peito, endireitou o “quépi” e, com ambas as mãos a acariciar o tecido encardido pelos respingos das “lavagens”, retorquiu:
Eh hóme, atina! Tu conheces esta farda? Tu conheces esta farda?
Pensar - compensa! A Paz requere Valentia...
João Luís de Medeiros*
P.S. O autor do texto nao aderiu ao recente protocolo ortografico