As eleições de 4 de Fevereiro nos Açores são uma boa oportunidade para dar à política cultural — património e criação contemporânea — o destaque que merece. Mais do que permanência ou alternância partidária na chefia do novo governo, como se a erosão de uns ou as lindas promessas de outros bastassem para uma boa governação, importa que os programas eleitorais exibam diagnósticos precisos e estratégias consistentes, e sejam muito mais do que coloridos papéis de embrulho de coisa nenhuma, para que tudo fique na mesma, ou talvez um quase nada melhor ou mesmo ainda pior. Por isso, é este o momento para que a sociedade açoriana expresse na imprensa as suas ideias sobre a política cultural que melhor sirva os Açores e os Açorianos, tentando que esse debate influencie os programas eleitorais dos partidos políticos.
Queixas, reclamações e irritações quanto ao sistema de apoio às actividades culturais e aos montantes anualmente disponíveis haverá sempre — não haja dúvidas sobre isso —, e ninguém de bom senso deixará de falar em agilizar procedimentos e respeitar os prazos de pagamento contratualmente estabelecidos. Mas se este sistema de mão estendida e boca calada é o ultrajante reverso do reconhecimento da valia de instituições e do seu desempenho passado e presente enquanto protagonistas duma acção cultural indispensável à Região, o Governo Regional haveria de promover e facilitar um acréscimo exponencial do associativismo, que pelo menos em parte dispense ou atenue o financiamento público. Isso colocaria os institutos e agentes culturais (e desculpem o palavrão!) na contingência e obrigação de aprofundarem o seu contacto com as comunidades locais, que são, afinal, a sua principal razão de ser, libertando-os da tutela governativa e, até, de entorses de natureza partidária que lhe possam estar associados.
Numa série de cinco artigos publicados neste mesmo jornal entre Novembro de 2022 e Fevereiro de 2023, expressei estas e outras ideias, num espectro temático alargado, a que todavia não dei maior seguimento por ausência de comentários e réplicas por parte de quem eu julgava motivável para isso. Um desses artigos abordava o apoio público à edição de novos livros e às editoras e propunha formas complementares de distribuição livreira na Região, que colmatassem a sua confrangedora debilidade estrutural. É assunto de primeira importância a que os partidos políticos devem ser chamados a compromissos claros e inequívocos, numa altura em que a actividade editorial nos Açores alcança patamares únicos no país.
Mas há também um outro ponto de grande relevância, e que muitas vezes passa despercebido. É a estabilidade, qualificação e reforço do quadro técnico de museus, bibliotecas e arquivos, que permitam atrair, cuidar e divulgar novos e velhos espólios, e também a disponibilidade imediata de verbas para aquisições em leilões, de modo a manter nos Açores — ou trazer aos Açores — objectos de arte que lhe digam respeito. (Decisões a tomar em meia dúzia de dias não são compatíveis com burocracias pesadas e lentas, e o risco de dispersão é por de mais evidente.)
Mais ainda: um quadro altamente qualificado e prestigiado de museólogos, bibliotecários e arquivistas nos Açores não é coisa que se construa num ciclo eleitoral, mas um desígnio do consenso político de longa duração que deve prevalecer em matérias essenciais, e que muito menos será obtido se a tendência for a de destituir ou nomear direcções com base em critérios de adesão partidária, qualquer que seja. Conservação e restauro patrimonial sob condições climáticas adversas exigem meios de trabalho e formação técnica além-arquipélago a que não se pode virar costas, sobretudo se se quiser criar uma efectiva autonomia também neste domínio.
Museus, arquivos e bibliotecas com orçamentos reforçados podem proporcionar a itinerância de exposições e o live streaming de palestras e conferências, alargando a outras ilhas, ou a partes distantes da mesma ilha, os esforços e benefícios da sua programação. Mas também — e por que não? — levar para longe o melhor que se faça aqui. Dando um exemplo: a magnífica exposição sobre Alberto I do Mónaco, actualmente no Museu Carlos Machado, não é merecedora de ser vista em Cascais, em Bruxelas ou, imaginemos, no Museu Marítimo de Barcelona? Claro que sim. E a exposição sobre a Visita dos Intelectuais em 1924, que suponho esteja a ser preparada, não podia ambicionar uma apresentação em Lisboa ou no Porto?
Diplomacia cultural também é política cultural.
Como qualquer outro, o governo actual fez coisas boas e outras menos boas em termos culturais (aqueles a que me refiro aqui), e naturalmente merece ser confrontado com isso. Mas seria injusto, e sobretudo seria imprudente, circunscrever o que merece ser feito às críticas zangadas duma comunidade cultural largamente dependente de apoios públicos, esquecendo que décadas de domínio do Partido Socialista — como é seu timbre… — não deram resposta a problemas estruturais, preferindo instalar clientelismos onde importaria construir uma sociedade mais dinâmica e livre, e porque livre mais forte. Reversão não equivale a inovação, e erros antigos não são rasuráveis simplesmente porque os mais recentes estão agora mais à vista. Há muitíssimo por fazer, e só um estimulante debate de ideias permitirá encontrar os melhores caminhos. Que os melhores dos Açores — os independentes, os deste partido e os daquele e daquele — se prestem a dedicar um módico do seu tempo a essa discussão pública será sempre, e para todos os efeitos, um indício da vitalidade da sociedade, ou do seu resignado e fatal adormecimento. E assim sendo…
Vasco Rosa