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Folie à deux – Autópsia psicológica

Ponta Delgada, 11 de setembro de 1991.
A humidade insuportável. No prólogo da última consulta, um “pedido urgente” e logo uma primeira vez. Extra. Encaixada na agenda no lugar do lanche. O meu pavio curto,
— Doente referenciado, ou é difícil ou é malcriado.
Abro a porta. Reconheço a figura no mesmo instante. A barba longa, os ombros curvados sobre o tronco, os dedos longos, esqueléticos, a pele branca, demasiado branca, e aqueles olhos azuis encovados, espelhando-lhe a alma toda, doente, perdida neste mundo.
— Chamo-me Miguel. O que o traz a esta consulta?
Movimentos lentos, penosos. Frágil. Ao sentar-se, um esgar de dor. A mão esquerda ergue-se de súbito ao abdómen. Não o apresso, dou-lhe o seu tempo.
— Como posso ajudar?
Olha-me nos olhos. Demora-se. Demoro-me com ele. Ficamos ali, num diálogo silencioso de olhares, até que
— Eu chamo-me Antero…Não sei por onde começar.
Aceno levemente com a cabeça, encorajando-o.
— Um amigo insistiu que viesse consultar um psiquiatra. Regressei a São Miguel há 3 meses… há muito que… que não me sinto… (pausa) As palavras faltam-me…(pausa)Eu disse-lhe que era inútil, que não valia a pena, já, maçar-se. Maçá-lo a si. Desculpe. (suspira) Insistiu muito. (pausa) Consultei um colega seu, em tempos, em Paris. Talvez o conheça, um professor…(pausa) Recomendou, sei lá. (pausa) “A mente de uma mulher no corpo de um homem” e outros disparates da mesma ordem de grandeza. (pausa) Passei uma boa fase em Vila do Conde, depois disso.
O tom baixo, a cadência hesitante de cada frase e os intervalos de silêncio, longos, revelam o esforço sobre-humano que despende no relato. Oiço-o, dolorosamente. Sinto o peso que carrega. É inevitável. Quase que o esmaga. E a mim. “Quase”?
Muito lentamente, levanta o olhar do chão e prega-o, sem esperança, novamente ao meu. Silêncio, mas como se gritasse
— Entendes-me, Miguel?!
Respondo à pergunta que não chega a soltar
— Muitos de nós, quando se sentem mais ou menos como se tem sentido, colocam a hipótese de acabar com a vida. Tem pensado nisso?
Uma lágrima escapa desenfreada do seu olho direito. Depois outra. E outra também do esquerdo. E silêncio. Outra vez, silêncio.
— Obrigado. – responde, muitos minutos depois, brevissimamente aliviado.
Na minha mão, o primeiro dos espinhos que traz cravados na alma.


Passadas algumas semanas, no fim da nossa terceira consulta
— Voltei a escrever.
Entrega-me uma folha. Um soneto. No título, em latim, o desejo “Renasce In Pace”.
— R.I.P..Subtil, não lhe parece? – sorri, pela primeira vez desde que nos conhecemos.
Sorrio com ele. Leio, esmagado pelo génio libertado daquele homem.
— Ia morrer naquele dia. Era esse o plano. Aqui bem perto. Naquele banco, sob a inscrição “Esperança”, junto ao Convento… da Esperança. (suspira) Obrigado.
A luz clara da manhã irrompe inesperadamente.
— Ganhei peso. (sorrimos os dois) O estômago não me atormenta já. As minhas enteadas tão felizes a ver-me comer! O meu amigo Oliveira Martins, agora mais descansado, pediu-me o seu contacto… Ah! E pondero voltar a Vila do Conde.
— A seu tempo, Antero.
—Sabe? Tenho pensado muito no que me disse naquele dia… tanto que ficaria por dizer, por fazer, por viver! As meninas, a minha irmã Ana, os meus amigos… a Poesia. (pausa) Não o atormenta, o potencial de tanto homem e mulher por esse mundo afora perdido para essa maldita depressão e para o suicídio?
— Oh! se me atormenta, Antero! Se atormenta.

(a ouvir: A garota não – Prédio mais alto)

João Mendes Coelho*

*Médico da Psiquiatria e Adictologia; Pós-graduado em Suicidologia, em Dependências Químicas e em
Psicoterapia Cognitivo-Comportamental; Aluno de Doutoramento na Escola de Medicina da Universidade do Minho; Docente convidado da Universidade dos Açores

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