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O Tempo das Matanças

Janeiro está prestes a findar. As temperaturas baixas mantêm-se, como é próprio da época, mas nem por isso arrefecem a intensa atividade político-partidária da campanha eleitoral.
É saudável deixar falar os protagonistas políticos, pois muitos deles, terminado o período eleitoral, retiram-se de cena e ninguém mais os vê.
Não acontece o mesmo com o quotidiano das populações rurais.
Nestes dias frios, muitas famílias ainda mantêm a tradição da matança do porco – costume antigo que envolve uma série de rituais, símbolos da alegria, da confraternização e da abundância que daí advêm.
Em meados do século passado, o tempo das matanças dos porcos era uma quadra festiva preparada com certa antecedência, para que não faltasse o cebolinho, o feijão, o peixe e os condimentos como a laranja azêda.
Tudo se deixava para trás, para que nada faltasse: os trabalhos da terra e os animais do campo tinham de esperar.
O pai de família encarregava-se de arranjar lenha grossa ou achas para derreter nos caldeirões o toucinho, cozer as carnes e fazer as morcelas, vinho com abundância e outras bebidas para brindar os homens durante a matança e “mato” seco para queimar o pêlo do animal.
Importante era a função do matador. A ele competia não só desventrar o animal para ficar a enxugar dependurado num tirante da cozinha ou da loja, como também esquartejá-lo.
As mulheres ajudavam nas limpezas dos utensílios de cozinha e das louças para as refeições, bem como na sua preparação e confeção, embora houvesse uma mestra-cozinheira .
A entreajuda da família e dos amigos traduzia-se ainda na oferta de produtos caseiros, nomeadamente: ovos, leite, farinha de milho, queijo, etc.
Nos dias da preparação havia que dar de comer a quem ajudava e às suas famílias.
Era uma labuta, de manhã à noite, no acender o forno, amassar e cozer o pão de milho e do bolo, e preparar a casa para a festa.
Festa também para a rapaziada. Faltava-se à escola, alegando ajudar os pais e os professores compreendiam a razão, se bem que, a maior parte do tempo se passasse na rua a jogar com uma bola de trapos, ou com a bexiga do porco morto.
Uma das cenas mais alegres no dia da matança em casa dos meus avós, era a lavagem das tripas na costa, com mulheres divertidíssimas a brincarem, atirando água salgada umas às outras.
A água doce dos tanques e cisternas era escassa e havia que poupá-la para o verão.
Dos fundos poços de maré era custoso tirar água pelo que a água salgada tinha a vantagem de absorver os dejetos e desinfetar as tripas onde se enchiam as morcelas e a linguiça.
A refeição mais importante do dia era o jantar. À mesa, os donos da casa rodeavam-se do padre, do médico e de outros familiares mais próximos. Crianças e ajudantes da cozinha não tinham lá lugar.
Da ementa, constavam iscas de fígado, morcelas confecionadas com o sangue da “vítima”, folhas de cebolinho picado no dia anterior e a gordura do véu, temperadas com laranja azeda e malagueta. Autênticos pitéus supervisionados pelo paladar apurado da minha avó Elvira que, no entanto, não podia comê-los.
No final do requintado jantar e porque as matanças coincidiam com a quadra carnavalesca, apareciam, normalmente, os mascarados.
Os mais pequenos, com medo, faziam uma gritaria medonha e os mais velhos tentavam descobrir quem seria este e aquele – normalmente, pessoas da convivência habitual da família.
Terminada a refeição e despedidos os convidados, os da casa punham de novo a mesa para os da cozinha. Refeição rápida, mais para conviver e descansar da longa jornada que começara ainda noite escura.
Não havendo lugar para bailar a chamarrita – tradição muito antiga das “folgas” – conversava-se, jogava-se à sueca, com um entusiasmo de quem não sabia perder: fortes batidas na mesa ao corte de trunfo e discussões por “arrenúncias” dissimuladas que, mesmo assim não acordavam as crianças e os bebés ao colo das mães.
O convívio terminava quando o primeiro filho da casa se levantava e despedia-se dos da casa com o “até amanhã, se Deus quiser”.
No dia seguinte mal terminava a escola, era um “pés para que te quero”, direito a casa da avó, para distribuir presentes por quem o dona casa entendia dever “pagar favores”. Normalmente, um pedaço de toucinho, carne e uma morcela, era o que cabia num prato coberto por uma toalha branca bordada.
“Leva com cuidado!” – dizia a avó- ”Diz que é uma oferta do avô para o Senhor Doutor [médico], e obrigado!”
E eu lá ia, com todo o cuidado para não tropeçar nalguma pedra maldosa, pensando na moeda de 5$00 ou 2$50 que poderia receber.
Entregue o presente, aguardava sentado nos degraus da escada alva de neve, até que a D. Maria aparecia. Devolvia-me o prato com uma mão e com a outra escondia a prendinha: “Isto é para ti. Obrigado.” E eu, sem faz barulho para não incomodar o consultório do Senhor Doutor, descia os degraus, com a mão bem fechada, e só a abria após passar a rua da Escola.
Outros presentes levava, mas aquele era o mais apetecido, pois dava para comprar chocolates na loja do Cavalheirinho.
Ainda hoje, no Pico, as Matanças dos porcos são convívios muito alegres que congregam familiares e amigos celebrando a vida, a fartura e a amizade com danças e cantares tradicionais o maior popular dos quais é a famosa Chamarrita à moda do Pico.

José Gabriel Ávila*
*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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