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Centenário de João Afonso, VIII : «Bibliografia Geral dos Açores»

A José Guilherme Reis Leite

Passam hoje, precisamente, dez anos sobre a morte de João Afonso, num período em que decorre também o centenário do seu nascimento, em Angra do Heroísmo, a 27 de Agosto de 1923. Desconhecido de muitos, este escritor açoriano é um caso exemplar de extrema devoção a estas ilhas e às suas coisas, da história feita em «papéis velhos» — como gostava de dizer —, à etnografia e à museologia. Uma obra também repartida por milhares de páginas de jornal, que exibe um zelo regionalista de invulgar presença e continuidade, sem equivalente no tempo presente. Reabilitar e enfeixar em livro os trabalhos deste homem — se possível, não esquecendo a sua obra poética e de tradutor de poesia — é algo que urge cumprir aqui e agora, para que se conheça panoramicamente a expressão da sua singularidade pessoal, a qual não se dilui nunca no esforço titânico — e não há outra forma de o classificar — de serviço público que foi o seu, ainda que este, por si mesmo, nos mereça respeito e agradecimento enquanto um dos muitos pilares da identidade e da autonomia dos Açores globalmente consideradas.
Ao longo desta série de artigos no Diário dos Açores, de outros noutros periódicos e também de palestras que me foi proporcionado realizar, desde há um ano a esta parte, em Angra do Heroísmo, Lajes do Pico, Ponta Delgada e Santa Cruz das Flores, tenho chamado a atenção para alguns dos trabalhos de João Afonso, em particular no que diz respeito à baleação açoriana e à sua museologia, às suas relações literárias e de amizade com Vitorino Nemésio e Pedro da Silveira, ou à sua admiração por Ernesto Canto da Maya. A verdade, porém, é que já deveria ter sublinhado com traço grosso aquela obra que melhor exprime o seu zelo tão raro e tão lúcido: a Bibliografia Geral dos Açores, empreendimento de grande fôlego que ele estava talhado para cumprir como ninguém, mas que só a sageza de José Guilherme Reis Leite soube escolher para tornar actualizado o inventário científico, histórico e literário desenvolvido por Ernesto do Canto (1831-1900) no Arquivo dos Açores.
Qualificar a Autonomia de 1976 com um corpus bibliográfico de referência foi um acto político da maior amplitude, a par da criação da Universidade dos Açores, feita em simultâneo, e que aquela manifestamente serve, e bastante antes do sonho duma Enciclopédia Açoriana. À época, trinta anos como bibliotecário em Angra davam a João Afonso todos os instrumentos técnicos necessários para tomar em mãos a tarefa de criar uma versão regional do Dicionário Bibliográfico Português de Francisco Inocêncio da Silva e Brito Aranha (25 vols., 1858-1927), assimilando o modelo deste, com os méritos e também com as fragilidades que hoje lhe apontamos, mas à altura a referência maior em contexto português. Contudo, a história editorial da Bibliografia Geral não foi das melhores, como já referi noutro lugar. Inicialmente apontada para coincidir com os cem anos da iniciativa de Canto, em 1981, atrasou-se logo quatro anos, com os dois primeiros tomos a sair em 1985-86, o terceiro em 1997, completando já 1606 páginas. Depois disso — em 2021 e em edição apenas digital — surgiram dois volumes, até ao fim da letra N, faltando, portanto, ainda três aos oito inicialmente previstos e anunciados (fora os comuns aditamentos e actualizações, que mais tarde importará compilar, como sempre sucede em obras de referência deste tipo, e atendendo ao longo período entretanto decorrido).
Como foi possível que a administração pública regional abandonasse — como se nunca tivesse existido!!… — este admirável trabalho é algo que brada aos céus, e a que os céus não sabem responder, mas merece ser classificado como uma inacreditável incúria e negligência que se foi arrastando pelos anos afora e à vista de todos. João Afonso acabaria por não ver completa a sua Bibliografia Geral dos Açores e só podemos imaginar quanto lhe terá custado o desprezo político por trabalho tão devotado e útil, e pelo dinheiro em vão saído do erário público. Não custa crer que lhe tenha desgostado tão grande desacerto dos decisores, sobretudo depois que, em 1997, com Luiz Fagundes Duarte a director regional de cultura, a impressão do vol. III parecia prometer a restante publicação. Foi esperança efémera, e nem mesmo a boa exposição-homenagem logo póstuma em 2014, na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital — ali mesmo, paredes meias com a sede da DRAC, que nada entendeu… — serviu de impulso para a conclusão do projecto. E mais uma década se passou, como se nada fosse, como se não importasse, como se ninguém visse.
O centenário do escritor e bibliotecário acabaria por configurar-se como uma nova (e derradeira?) oportunidade para desfazer essa incompreensível lassidão e insensatez. A 26 de Maio de 2023 escrevi nesse sentido ao director regional de cultura, Dr. Duarte Nuno Chaves, que, de facto, não deixou cair o assunto nem o enfiou numa gaveta funda, pois já fez imprimir os dois tomos antes só digitais, que no próximo dia 7 de Março serão apresentados numa sessão em Angra — e, mais ainda, prometeu à filha de João Afonso, Dra. Maria João Galvão Teles, ter a restante Bibliografia Geral a cheirar a tinta fresca pelo fim deste ano.
Esta excelente notícia merece o aplauso de toda a gente — quaisquer que sejam as preferências partidárias ou políticas de cada um, se as tem —, como acto de elementar justiça e reparação duma longa falha da governação açórica. Mas também, e seja-me permitido acentuar e enaltecer isto, pela firme directiva de enfrentar — num prazo dado e limitado — o que julgo ser ainda uma extensa e complexa tarefa de organização editorial e produção gráfica de materiais deixados avulsos, num espólio que também se espera possa ser integralmente inventariado e dado à consulta pública durante esta efeméride centenária. Fazendo tudo isto, o actual GRA, em particular a DRAC e os serviços que tutela, lançam à sociedade um bom sinal. O sinal de que as instituições patrimoniais dos Açores podem e devem ser chamadas a cumprir diligentemente as tarefas a seu cargo, com um quadro técnico a todo o tempo estimulado a dar o seu melhor em realizações marcantes e tirando máximo partido da competência profissional dos seus elementos individuais — neste aspecto, poderá dizer-se, seguindo o exemplo dado por João Afonso (entre outros) —, de certa maneira obscurecidos pela insistente propaganda de que aquela direcção regional nada mais é, ou pode ser, que o balcão de banco onde a instituída, viciada e viciante subsidio dependência de criadores culturais vai cobrar os cobres a que julga ter direito indiscutível, como ficou esclarecido na recente disputa eleitoral.
Focar o trabalho da DRAC na qualificação funcional e patrimonial dos seus museus, bibliotecas e arquivos, fazer aí tudo — e é muito — o que foi sendo adiado em tratamento e divulgação de espólios literários, artísticos e históricos, preservar e acrescentar colecções, aquisições e doações, e ao mesmo tempo fixar, reforçar, renovar — e premiar — boas equipas técnicas, será acção governativa discreta, silenciosa porém sólida e estruturante, mas igualmente uma garantia de consolidação da Autonomia Açoriana, também ela, aliás, em vésperas de ser comemorada.
Depois de impressos os oito volumes, duas coisas ficam para fazer e levar às últimas consequências esse magnífico projecto duma Bibliografia Geral dos Açores. A primeira delas é simples: a versão PDF da obra completa num único documento comodamente pesquisável da primeira à última página, e disponibilizado no catálogo das bibliotecas públicas açorianas. A segunda, certamente ambiciosa, é todavia imprescindível: a publicação, a cada três anos, dum volume de aditamentos e actualizações correspondente a cada década transcorrida desde o termo do inventário deixado por João Afonso. Seria um trabalho contínuo, que dure e dure pelos anos afora. Significa isto que as duas principais bibliotecas dos Açores, a de Angra do Heroísmo e a de Ponta Delgada, e eventualmente em parceria com a biblioteca da Universidade dos Açores, destacariam em permanência um dos seus quadros para essa função, que incluirá a indexação de artigos relevantes saídos na imprensa e em publicações apenas digitais, de tipo académico ou outro. Não me parece difícil de fazer: basta que haja vontade e determinação política para isso.

Vasco Rosa

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