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As Duas Cruzes do Império, de Daniel de Sá

Há anos que dedico bastante do meu tempo livre a ler, em especial à literatura açoriana, em cuja seleção tenho contado com a preciosa a ajuda de Onésimo Teotónio Almeida. De entre os vários autores sugeridos, Onésimo falou-me sempre com grande apreço de Daniel de Sá (1944-2013), lamentando a dificuldade de, hoje em dia, se encontraremos seus livros no mercado. Na conversa que tivemos este ano nas Correntes de Escrita, falámos, mais uma vez, sobre aquele autor e sobre a sua facilidade de escrever no estilo dos nossos escritores da época do Barroco.
Passados alguns dias depois do meu regresso da Póvoa de Varzim, para grande surpresa minha, recebi um e-mail do Onésimo a informar-me de que, em breve, receberia, pelo correio, um exemplar de As Duas Cruzes do Império. (Memórias da Inquisição) (Lisboa: Edições Salamandra, 1999, 160 pp.) encontrado por um amigo num alfarrabista do Funchal. Apressei-me a agradecer-lhe e a manifestar o meu espanto: depois de tanto tempo de diligências goradas, por um caminho absolutamente inesperado aparecia uma obra do Daniel de Sá para eu poder ler, e logo escrita no estilo barroco. O livro chegou dois ou três dias depois e iniciei imediatamente a leitura.
A epigrafe chamou-me imediatamente a atenção: “O absurdo da Inquisição foi praticar o mal em nome de Deus. O paradoxo do nosso século tem sido destruir milhões de homens e mulheres em nome da humanidade” (p. 5). Na mesma página, o autor cita as obras a que recorreu para aprofundar o seu conhecimento do tempo histórico em que decorre a ação do romance.
Quando cheguei ao fim do primeiro capítulo, senti necessidade de o reler de um modo mais lento, porque a leitura da escrita barroca exige um tempo diferente do da escrita atual. Há uns anos tinha o hábito de, com alguma frequência, pegar num dos livros de sermões do Padre António Vieira e ler umas horas seguidas. Essas leituras permitiam-me, por um lado, deliciar-me com a escrita do grande pregador e, por outro, de exercitar a mente ao acompanhar a argumentação do padre jesuíta. A segunda leitura do capítulo de As Duas Cruzes do Império permitiu-me reganhar a agilidade de leitura.
Por falar no padre jesuíta, Vieira está bem presente nesta obra de Daniel de Sá. Logo nas primeiras paginas, o romancista declara que escreve o livro “Em memória do Padre António Vieira e de quantos resistiram à Inquisição” (7). Para além disso, o jesuíta é personagem do romance; por exemplo o último capítulo (153-160) é um sermão pregado em São Roque, Lisboa, que o romancista põe na boca de Vieira.
A trama do livro anda à volta de dois temas fundamentais, as duas cruzes do império: a Inquisição e a Escravatura. Na primeira parte do romance, que se passa em Lisboa, o autor faz um retrato do Santo Ofício que dominava pelo terror toda a sociedade da época. As suas regras de funcionamento e os meios de que dispunha permitiam-lhe perseguir pessoas no meio de uma enorme arbitrariedade, fazê-las sofrer no corpo e na alma, sofrimento que, muitas vezes, só terminava nas fogueiras dos autos de fé. Desde as primeiras páginas o leitor vai acompanhando a vida do Padre Paulo e de toda a tragédia que ele, tal como muitas outras vitimas daquele tribunal, sofreu às mãos dos inquisidores que, recorrendo à tortura física e psicológica, destruíam quem lhes caísse nas mãos. Qualquer leitor atento continuamente se verá confrontado com a pergunta: mas como foi tudo isto possível? Como é que uma religião, o cristianismo, cujo fundador afirmou que a Lei se resumia em “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”, criou um mecanismo repressor tão violento, abrangente e arbitrário.
É de notar que não foi apenas por razões religiosas que Dom Manuel, e depois Dom João III, pediram ao papa a criação da Tribunal do Santo Ofício, em Portugal. Os reis sabiam bem da importância da unidade religiosa para a coesão política do reino. É de notar que a política iluminista de Marquês de Pombal não extinguiu a Inquisição; converteu-a na Real Mesa Sensória. O poder, seja religioso seja político, tende sempre a ser totalitário.
O segundo grande tema do romance é o da escravatura. Na primeira parte, como disse, acompanhamos a vida do Padre Paulo preso pela Inquisição, cuja sentença foi a sua expulsão da Companhia de Jesus e o seu envio para o Brasil. Na segunda, acompanhamo-lo em terras brasileiras, numa sociedade colonial em que, por um lado, abundavam os escravos vindos de África e, por outro, a vontade dos colonos em reduzir à escravatura a população indígena era generalizada.
Se é verdade que a escravatura não foi inventada pelos portugueses, certo é que o tráfico de escravos acompanhou as Navegações portuguesas desde o início da exploração da costa africana. Diz-se, frequentemente, que as Descobertas visavam expandir a Fé e o Império mas, paradoxalmente, a expansão da Fé, da fé cristã, para a qual, no dizer de São Paulo, na Carta aos Gálatas (3, 28),“não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus”, foi acompanhada desde cedo pelo tráfico negreiro e a abolição do tráfico de escravos, no Portugal europeu, só aconteceu em 1761, e a proibição da exportação de escravos por mar e por terra, em todos os domínios portugueses, apenas foi decretada em 1836.
Uma nota para terminar. Há uma certa tendência para pensar que a Inquisição e a Escravatura estão lá para trás na História, e que hoje cada um de nós, portugueses, não é afetado moral e emocionalmente por aqueles factos históricos. Duas estórias de vida, contudo, mostraram-me à saciedade que não é bem assim; quando menos esperamos, aquelas duas realidades histórias aparecem-nos no caminho e fazem-nos mossa.
Em janeiro de 1985, estava eu na Bélgica a trabalhar no doutoramento, fui convidado por um colega belga, numa tarde de Domingo, para um passeio que terminaria num “fondue” que juntaria vários amigos; aceitei. Quando nos sentámos à mesa, ficou à minha frente uma senhora que eu não conhecia. Feitas as apresentações, sem que eu percebesse bem porquê nem como, a conversa desembocou na Inquisição. Comecei por dizer que era uma das páginas mais negras da história do país e tentei fazer um enquadramento histórico do aparecimento do Santo Ofício em Portugal. A conversa continuou e sempre que eu tentava encaminhá-la para outro assunto, a senhora dava a volta e regressava ao tema, repetindo, insistentemente, que a Inquisição tinha matado muita gente. Comecei a pensar que a senhora tinha tirado a tarde para me massacrar com o tema da Inquisição e a notar que ela ia assumindo com o andar do tempo um certo ar de superioridade moral. Ora, como eu tinha lido recentemente A Obra ao Negro, de Marguerite Yourcenar, tirei-me dos meus cuidados e, lembrando-lhe o livro, disse, no tom mais natural deste mundo, que a Inquisição portuguesa matara muita gente, mas as Guerras de Religião não tinham matado menos. Remédio santo: a conversa mudou de tema.
Em 2013, a convite do Prof. Ézio Lorenzo Bono, lecionei, como professor visitante, num mestrado no polo de Maxixe da Universidade Pedagógica de Moçambique. O Professor sabia que eu tinha feito serviço militar naquela ex-colónia e passara por Inhambane, integrado numa coluna de 80 viaturas a caminha do Norte. Numa tarde livre, ofereceram-me um passeio à cidade de Inhambane. O condutor do jeep era um jovem africano simpatiquíssimo. Ao chegar à cidade, circulou pelas ruas, percebendo-se que tinha um destino em mente. A certa altura parou o jeep, apontou para uma casa e disse-me que era ali que ficavam os escravos a aguardar o embarque nos navios negreiros. Fiquei a olhar para ele sem palavras. Estávamos em 2013, o tráfico de escravos tinha sido abolido em 1836 mas, como acabara de constatar, a memória dele perdurava na juventude de Inhambane.

José Henrique Silveira de Brito

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