Já se aproxima a data há muito esperada dos 50 anos do 25 de Abril. Digo há muito esperada pelos que viveram com emoção esse dia verdadeiramente histórico, de ruptura com o regime ditatorial e de instauração das liberdades públicas, com uma amplitude nunca antes experimentada, no nosso País. Mas a maioria dos cidadãos portugueses e os numerosos estrangeiros que vivem entre nós olham para isso tudo como algo perfeita e totalmente adquirido e por isso, ao menos aparentemente, nem reagem ao apelo às celebrações cívicas, limitando-se a gozar o descanso que o feriado oficial permite.
Ora, parte importante das responsabilidades dos titulares dos cargos políticos num regime democrático é manter sempre acesa a chama da Democracia. Não me parece prudente dar por adquirida a Liberdade e as suas consequências práticas! É uma tarefa de sucessivas gerações, sempre com matizes novos, especialmente actual nos nossos dias, em que parecem acumular-se preocupantes ideologias e práticas ameaçadoras das liberdades individuais. E nem falemos das consequências desastrosas das guerras que estão sendo combatidas em vários pontos do planeta e até dentro do território europeu, impondo esta última sacrifícios tremendos à martirizada gente da Ucrânia.
Há cinquenta anos o quadro era diferente e a esperança de dias melhores após a queda do regime ditatorial estava bastante espalhada. As movimentações de descontentamento alastravam na sociedade portuguesa, sempre sob a atenta perseguição pelo aparelho repressivo da ditadura. Também nas nossas Ilhas tais movimentações eram visíveis e recordo bem a presença do responsável máximo entre nós da PIDE/DGS nas conferências que fiz na Lagoa, em anos sucessivos, durante o meu mandato como Deputado à Assembleia Nacional, a convite do Grupo de Amigos, liderado pelo meu Primo Jorge Amaral Borges.
Foi ainda mais chocante o que se passou na Ribeira Grande, numa outra conferência minha, a convite também do Grupo de Amigos, liderado por Fernando Monteiro, quando o tema da defesa do Ultramar foi trazido a debate por Ernesto Melo Antunes, presente entre a numerosa assistência. Muito alterado, o Governador do Distrito então em funções veio dizer-me, na altura dos cumprimentos finais, que tal discussão não se poderia repetir e que se fosse preciso proibiria a realização de novas conferências minhas. Fiquei atónito com tal desplante, que punha em causa a liberdade de pensamento e de palavra de um representante do Povo, legitimado em eleições! Mas era assim o regime então existente, castrador da livre opinião e da discussão aberta dos problemas nacionais.
Entretanto, em Lisboa, sucediam-se os convites para contactos directos por parte de diplomatas de diversos países amigos de Portugal e dispostos até a ajudar uma futura transição do estatuto dos territórios ultramarinos. Mas ao mais alto nível não havia resposta, como julgo já ter referido, a propósito de diligências que fiz com o propósito de transmitir os apelos que me iam chegando.
O meu Diário desses dias regista várias conversas com Marcelo Rebelo de Sousa, colega de Faculdade, embora em anos muito diferentes, agora envolvido no projecto, lançado por Francisco Balsemão, do jornal Expresso. Frequentava muito a redacção do jornal, para conversar com o Director do jornal, antigo companheiro das lutas políticas da Ala Liberal. Além disso eu era o correspondente do Expresso nos Açores, assinando as minhas colaborações com um heterónimo J. Soares Botelho. Já nessa altura, Marcelo sabia tudo e analisava com desenvoltura todo e qualquer assunto, de modo que as conversas com ele eram sempre interessantes e muito proveitosas. A sua percepção sobre o fim do regime era que estava bem mais próximo do que alguns imaginavam.
Diogo Freitas do Amaral era outra das pessoas com quem na época trocava impressões sobre a situação política. Os seus juízos eram cáusticos, sem perder a esperança de uma reviravolta ao mais alto nível. Era o líder incontestado de um grupo já envolvido no desempenho de altos cargos políticos, mas mantinha-se a uma prudente distancia, recusando vários convites para fazer parte do Governo, em nome da carreira universitária, que muito prezava.
Estava eu então elaborando dois projectos de lei que previam a possibilidade de a Assembleia Nacional convocar para deporem perante as comissões parlamentares altos responsáveis da Administração Pública; e também organizar, à moda americana, “hearings” com a participação de pessoas especialmente informadas sobre questões de interesse geral. Sabia já que havia quem torcesse o nariz a quaisquer inovações de sentido democratizante, mas persisti no meu propósito, mesmo antevendo que o fim do processo seria o “chumbo” de tais projectos.
Na elaboração dos ditos projectos de lei pedi a opinião e a ajuda de dois juristas de nomeada, com quem mantinha relações de amizade, concretamente Jorge Miranda e José Robim de Andrade. Reuni com os dois, separadamente, nos dias 17 e 18 de Abril e apenas com o primeiro ainda no Sábado dia 20.
Por ter estado adoentado, fui a São Bento ao fim da tarde do dia 24 de Abril, apenas para fazer entrega na Mesa dos dois projectos de lei. No regresso a casa passei pelo Expresso para falar com Francisco Balsemão. Dele recebi informação de estar implicado num processo, movido talvez pela Censura e a correr na Polícia Judiciária, como autor de uma notícia sobre a NATO nos Açores. Poucas horas depois, em plena noite, foram emitidas na rádio as senhas musicais para avanço das tropas em revolta sobre os objectivos predeterminados na “Operação Fim do Regime”.
João Bosco Mota Amaral*
*(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo
Ortográfico)