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Senhor Santo Cristo dos Milagres: a ideologia milagrosa que impulsiona o âmago dos fiéis

Mais um ano a tradição cumpre-se.
Hoje, as ruas de Ponta Delgada enchem-se de fiéis devotos que participam nas maiores festividades do Arquipélago dos Açores, as Festas em Honra do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
As celebrações que decorrem no quinto Domingo de Páscoa e terminam na Quinta-feira da Ascensão, trazem o retorno de muitos fiéis que partiram em busca de melhores oportunidades e que retornam à sua terra natal.
Tapetes de flores embelezam as ruas pela qual passará o andor do Ecce Homo, que mais uma vez, honra-nos com a sua presença.
O Coro Baixo transforma-se num jardim de flores e o Santuário da Esperança, recebe a visita de inúmeros fiéis, que por estes dias, procuram visualizar e agradecer as preces concedidas pelo Senhor.
Quer seja acompanhado de círios, quer seja a percorrer o Campo de São Francisco de joelhos ou descalços, a verdade é que, o fervor do povo micaelense sobre crença milagrosa do Senhor Santo Cristo dos Milagres, marca a vida quotidiana dos açorianos, sendo a mesma transmitida de geração em geração.

O conceito de “Milagre”
adquirido pela imagem

Embalado por lendas e histórias relativas há sua aparição no arquipélago, a verdade é que a fábula envolta à imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres é o que torna o mito religioso fascinante.
Este facto deve-se, em grande parte, às narrações orais que transitaram ao longo dos séculos e que amplificaram a aura de mistério que circunda a magnífica imagem.
O fervor do povo micaelense sobre e crença milagrosa do Ecce Homo “apresentam-se ainda nos nossos dias, em tempos de forte laicização da sociedade, como marca identitária constitutiva da açorianidade, ao lado das festas do Espírito Santo”1 e é neste contexto que, a “invocação, o culto e a Festa são apropriados pelos açorianos como factores de identidade, como marcas de pertença a uma comunidade, a uma sociedade, à Região Autónoma dos Açores.”2
Para compreender o verdadeiro sentido de veneração ao Senhor Santo Cristo dos Milagres, é necessário retornar no tempo.
É indissociável proferir-se a veneração ao Senhor, sem mencionar a figura de Madre Teresa da Anunciada, que ao ingressar no Mosteiro da Esperança, a 19 de Novembro de 1681 e descobrir a imagem, adoptou uma profunda reverência e devoção à mesma, tendo dedicado toda a sua vida em prol desta.
Madre Teresa da Anunciada acabaria, por tornar-se na primeira zeladora do Senhor Santo Cristo, cabendo a esta, a missão de preservar, zelar e embelezar a imagem, função esta, que cumpriu até à data da sua morte, a 16 de Maio de 1738.
Porém, é apenas no decorrer do século XVIII, que a veneração ao Senhor transladaria o seio da irmandade religiosa e enraizaria na comunidade açoriana.
É a 16 de Dezembro de 1713, aquando da concretização de uma procissão de penitência, com o desígnio de solicitar a Deus, o fim da crise sísmica que abalava a ilha, que o Senhor Santo Cristo adquiria o epíteto de “milagroso”. Nesta procissão, a imagem acabaria por cair, cessando, em simultâneo, a actividade sísmica.
É a partir deste momento que, a outrora esquecida imagem, adquiriu a denotação de “Milagres”, denominação que perpetua até hoje.
A adoração apregoada por Madre Teresa da Anunciada à figura do Ecce Homo, fez-se sentir nas acções e dedicação da mesma, levando a cabo a edificação de uma capela, em 1697, que fosse condigna do “seu Fidalgo”.
No entanto, esta obra não agradou a religiosa e, em 1702, arrancaria uma nova obra para uma segunda capela, tendo esta, contado com o apoio dos Condes da Ribeira Grande, os grandes patronos de muitas das jóias que adornam actualmente a imagem do Senhor Santo Cristo. Com esta nova construção a imagem do Senhor passou a estar em maior destaque e visível aos fiéis5, crescendo, assim, o culto envolta da mesma.
A verdade é que a tenacidade à imagem está bem patente no seio doméstico de muitas famílias micaelenses.
O fervor em prol do Ecce Homo é vivenciado através da presença de réplicas do mesmo, normalmente ornamentados com pequenos altares. Estas “representações artesanais, segundo o Hugo Moreira são uma expressão da religiosidade do povo açoriano”4, tendo a sua proliferação se fundido rapidamente e expandindo-se para outras formas de retratação, como os terços, as medalhas ou as estampas.

A crença envolta aos
“milagres das capas”
do Senhor Santo Cristo

Uma vez, atribuída a denominação de “Milagres”, a crença na figura do senhor sofredor, sobrepujou no imaginário do povo açoriano.
Para além de uma beleza impar e de singularidade única, a imagem, talhada em madeira sob a forma de um relicário, que representa o Senhor após ter sido flagelado, detém um magnificente espólio.
Das peças que escoltam o Senhor na sua “caminhada”, apenas o “relicário é uma peça única, enquanto o resplendor, a coroa, o ceptro, a corda e a capa possuem dois ou mais exemplares. Todos são fruto da devoção dos fiéis à Imagem, em diferentes épocas.”5
Classificado como Tesouro Regional, desde 2015, pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores, todo o espólio que compõe a magnitude e riqueza envolta à imagem, equivale ao valor incorpóreo que a fé dos devotos detém na mesma, tornando-a, assim, de valor incalculável.
E é nesta doutrina de veneração que destacam-se os inúmeros relatos associados às “graças” concedidas pelo senhor, os designados milagres alusivos à utilização das capas do Ecce Homo.
As capas que destinam-se a cobrir busto do relicário são todas “em seda natural, brocado, bordadas a ouro e com maior ou menor número de jóias incrustadas.”6 e provenientes, na sua maioria, de oferendas de fiéis devotos, como agradecimento pelas bênçãos obtidas.
Estas ofertas são uma “troca entre seres humanos e seres divinos, em que o crente promete fazer uma oferta previamente especificada se o ser divino lhe responder, favorecendo-o de uma forma específica.”7
E é nos sentimentos de “súplica, dádiva e graça”8 que “há o costume profundamente enraizado na tradição popular micaelense de utilizar uma capa do Senhor Santo Cristo para pedidos de cura a doentes.”9
O primeiro registo da utilização da capa do Senhor surge de um manuscrito que existe no Convento da Esperança, onde é relatado que “o Conde da Ribeira Grande, perante uma enfermidade, solicitou a capa da Imagem para que lhe fosse imposta.”10
Esta crença prevaleceu durante muitas décadas, tendo atravessado séculos de história, uma vez que “os fiéis acreditam que colocando a capa do Senhor sobre os próprios ombros poderão ser curados.”11
Os inúmeros pedidos rogando a capa do Senhor Santo Cristo dos Milagres para fins de cura, foram o mote para que, o Santuário manda-se executar diversas capas, exclusivamente, para a imposição de doentes. Estas são “de cor vermelha e singelas nos adornos”12 e de dimensão “mais reduzida que as capas da Imagem”13. O conjunto é, ainda constituído por “duas capas mais pequenas de cor branca, expressamente utilizadas em crianças e adolescentes.”14
Os pedidos para solicitação das mesmas, eram feitos “por familiares ou amigos”15 e as motivações para tal petição, baseavam-se na fé dos fiéis que acreditavam que ao colocarem a capa da divindade do Senhor Santo Cristo “sobre os próprios ombros”16 poderiam não apenas ser curados, como sentir também a força do Senhor.17
Para esta crença resultaram os inúmeros “relatos das sucessivas curas que são atribuídas através da imposição da capa”.18
A propagação destes milagres contribuiu para que a fé envolta às capas continua-se a alimentar o “imaginário e a própria devoção à Imagem e a tudo o que se associa à mesma.”19
E a necessidade do Santuário deter um grande número de capas é o reflexo da própria “abrangência do fenómeno e o impacto social e religioso do mesmo”.20

As “Relíquias” desafectas
às capas do Senhor Santo
Cristo dos Milagres

Para além do enorme significado que sustentam as capas, também torna-se importante destacar a existência das denominadas “Relíquias”.
Os exíguos bocadinhos de pano vermelho, entregues pelo Santuário, provêm das desafectas capas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, que encontram-se em elevado estado de degradação.
Porém, estes “pedaços de pano não se enquadram na definição tradicional de relíquia.”21 Estas emolduram-se como tal, pelo do facto de “a capa estar, ou ter estado, em contacto com uma imagem sacralizada”22, assemelhando-se os mesmos a recordações que são trazidos de um santuário.
A verdade é que estas pequenas “Relíquias”, aos olhos dos fiéis, são, não só, uma forma de se encontrarem protegidos, como também um prolongamento do aspecto devocional à capa do Ecce Homo.
Apesar da utilização, por parte das pessoas destas “Relíquias”, as mesmas não se encontram, actualmente, associadas a casos de curas, embora “funcionam como sendo um prolongamento do aspecto devocional da capa.”23
Em suma, a devoção explanada pelos açorianos à divindade do Senhor Santo Cristo dos Milagres, traspassa fronteiras. Hoje, a expectativa de olharmos o Senhor, que morreu crucificado pelos pecados da humanidade, é enorme e, apesar da dor e do sofrimento que alguns dos seus fiéis possam carregar neste dia, os mesmos não deixam de Honra-lo com a sua presença.

1ENES: 2010, 212
2Ibidem
3SOARES: 2018, 94
4SOARES: 2017, 244
5Idem:245
6ENES: 222
7SOARES: 2017, 250
8Idem: 251
9Ibidem
10Ibidem
11Ibidem
12Idem: 251
13Ibidem
14Ibidem
15Idem: 252
16Ibidem
17Ibidem
18Ibidem
19Ibidem
20Ibidem
21Idem: 257
22Ibidem
23Idem: 258

Bibliografia:
SOARES, Hélio Nuno: Os promotores de uma devoção no séc. XVIII: o Senhor Santo Cristo de Ponta Delgada. Revista da FLUP. Porto. IV Série. Vol. 12 nº 1. 2022. 85-106
SOARES, Hélio Nuno, O Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança de Ponta Delgada: uma proposta de valorização patrimonial em diálogo com a comunidade. Dissertação de Mestrado. Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 2018
SOARES, Hélio Nuno Santos, “A função terapêutica da capa da Imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres”. In Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol. 75, 2017, p. 245-286.
ENES, Maria Fernanda, “A invocação e o culto do Senhor Santo Cristo em Ponta Delgada – São Miguel”. In MARQUES, Cátia Teles e, Coord., Cultura – Revista de História e Teoria das Ideias. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, vol. 27, 2010, p. 211-226. Disponível em: http://cultura.revues.org/347
ROSA, Ana Catarina. 2023. “Senhor Santo Cristo dos Milagres: O mito e a Fé que sustentam a crença açoriana”, Diário dos Açores. 14 de Maio

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