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Voando no tempo

Tempo de tanta saudade,
Tempo que tempo levou,
Tempo da longe mocidade
Que nas asas do tempo voou.

O spray

Quando procedíamos a uma inspeção de rotina com o avião à boca do hangar de nariz apontado a nordeste, naquela calma e serena Santana, chegou-nos à fala pela primeira vez o novo comandante. A chegada de novos pilotos à companhia não só constituída, por essa época, acontecimento social como criava alvoroço. O novo comandante era um tenente-coronel, piloto aviador da força aérea portuguesa, alentejano, do distrito da princesa cidade dos beiraisromanos, Évora, como a canta o poeta Antunes da Silva. Do seu apreciável percurso sabia-se ter sido comandante de esquadra na base aérea quatro, na vizinha ilha Terceira, com a patente de major, onde fora apreciado pela sua humanização, mais respeitado ainda pelo rigor e justeza de carácter, ele próprio que transportava militares por razões humanas ou familiares, punindo-os quando estes lhe mentiam. Na fase de adaptação ao novo equipamento da Sata – Doves – envergando um fato macaco branco, entrou no hangar e pediu um avião que, de imediato lhe foi fornecido completamente abastecido. Só, voou por horas quase até ao mar dos Sargaços. Permanentemente atento a tudo o que fosse segurança, a exemplo nunca entrava a bordo sem fazer a visual dos trezentos e sessenta, era também um homem inquieto com problemas sociais. As tripulações rotativas por vezes mantinham juntos os mesmos tripulantes por períodos alargados e, assim acontecia acompanhar-lhe por semanas nas intermináveis oito ou mais viagens diárias entre S. Maria, a primeira no rosário dos Açores, e o aeródromo de Santana nesta nossa ilha do Arcanjo. Comunicativo e observador, sempre olhando o céu, falando de tudo com elevação, tanto dissertava sobre a casa de S. José, das semanas de estudos ou sobre a nova estrutura aeroportuária que, defendia para a atual posição, única, para isso fazendo ensaios e investigação meteorológica, com registos a um século de distância. Mantinha aceso e activo diálogo com a manutenção, com a meteorologia ou com o movimento que tinha a incumbência, entre muitas, de fazer travagens com jipe nas verdes pistas após enxurradas, a saber quanto a aderência e alongamento, para com segurança melhor utilização dos aviões.
Num mundo completamente diferente estava um nosso funcionário. Nascido por terras da Senhora da Saúde, quando o mundo se gladiava ferozmente, após a escolaridade, desce à cidade e entra no mundo do trabalho. É empregado comercial, funcionário de transportes colectivos e na década de cinquenta funcionário da Sata via S. Maria. Irrequieto e activo, surpreso, viu-se excluído de prestar serviço militar, ele filho de castrense, e que esteve para ir para os pupilos, não os perdoou. E assim, quando a ilha enxameada pelos vinte e cinco mil na campanha do ananás, mais um quem daria por isso!? Pede farda emprestada a um amigo do histórico nove, o da guerra do caldeiro, e de borzeguins engraxados, bivaque à banda, cigarro ao canto, divisas de arvorado, qual cabo Sementes do Corpo Expedicionário Português em França, foi para ruidosa festa onde deu nas vistas e amoleceu corações. E naquela saudosa e doce Santana não lhe passam os anos. Apaixonado por música e bandas, após o almoço, com um tinteiro de caparrosa com goma arábica à mistura, não fosse o diabo tecê-las, apagando as notas em dia de chuva, copiava com velha caneta de pau e na maior ligeireza dezenas de pautas para diversas bandas. Aos domingos cuidado a rigor de risca e pipe, na sua bicicleta de caixa na corrente, sonora corneta e estridente campainha, corria meia ilha à guisa de festas e arraiais. Feliz, colava-se a coretos e palanquins a ouvir rapsódias e mazurcas, o solo de algum barítono ou a apreciar o virtuosismo dos regentes. Nos serviços, como auxiliar de manutenção zeloso, tinha a seu cargo cuidar do interior dos aviões. Um dia, naquele espaço de não muitos passageiros e dois tripulantes, como comandante já a bordo, dá conta que o spray ambientador tinha acabado. Comprimindo a língua contra os lábios semicerrados começa por imitar o psse-psse-psse do spray. Advertido pelo comandante para terminar a fim de não saturar o ambiente, de imediato pediu licença e saiu. De cabeça enfiada nos ombros, passo estugado, vendo todos sem olhar para ninguém, refugiou-se no terminal. A idade não lhe amorteceu o olhar nem lhe apagou o sorriso.

Laureano Almeida

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