A Maria era uma mulher de 50 e tal anos, resolvida, segura, cheia de graça, máximo pragmatismo e zero conflitos. Ou, pelo menos, assim parecia. E assim se via.
Numa manhã chuvosa de segunda-feira, no caminho para a escola, mil vezes repetido, os travões falharam — Ou será que fui eu? — e o carro da frente e o outro ainda serviram de travão alternativo. A chapa maltratada, o estoiro dos airbags, dos nervos. E os polícias, pouco depois, numa calma tão despropositada como a chuva. — Como as segundas-feiras.
Semanas mais tarde, a dor atrás das costelas, que lhe tirava o fôlego desde o acidente teimava em continuar.
— Não tens nada partido, Maria… os traumatismos do tórax são mesmo assim, dão dores que duram semanas, tu sabes disso. — dizia-lhe o marido, num chuto para canto.
— Nunca fui de me queixar, doutor. Fui sempre eu quem vestia as calças lá em casa. O pilar da família, entende? Como poderia ser eu a ficar doente?
Num telegráfico pedido de observação para a Psiquiatria de Ligação, “F, 53A, Neoplasia do pulmão – estádio IV. Perturbação de Adaptação? Transfere-se para os Paliativos.” No mesmo telegrama, nada sobre o que se haveria de passar a seguir. Com ela e comigo.
Adaptando a expressão atribuída a Aristóteles, “há três tipos de homens: os vivos, os mortos e os que andam no mar”, costumo dizer que também há três tipos de profissionais de saúde: os bons, os maus e os dos cuidados paliativos. É mesmo impressionante, mas não há ser humano a trabalhar nos paliativos que não seja extraordinário. — E, sim, conheço muitos. — A seleção natural atua brilhantemente nesta área.
— Mas, e a Maria? — A Maria, na sequência do acidente, descobriu que teria a vida abreviada por uma besta de um tumor agressivo.
Resolvida, casada, segura, professora de português, cheia de graça, mãe de três filhos adolescentes, a pragmática Maria sem conflitos foi sempre saudável até que… não.
— No primeiro dia na Faculdade de Medicina, “a Saúde é um estado transitório que não augura nada de bom”.
Nos descontos finais, quando até ateus acreditam em Deus, aquela Mulher agigantou-se, — Ou será que fui eu que me tornei (ainda mais) pequeno? — Nela, a nobreza, à falta de melhor expressão, que bafeja só alguns predestinados a quem a morte não verga, mas acrescenta, como um ponto de exclamação a encerrar uma frase do caraças.
Quem entenda a morte como uma derrota, não se chega sequer perto do sentido do que para aqui andamos todos a fazer. A Maria mostrou-me isso, com uma elegância difícil de esquecer e impossível descrição. Impressionado, prometi-me que escreveria um dia a sua história. Não a que outros contariam dela, a que me contou ela dela própria. E talvez a mais ninguém.
No leito de morte, poupada à dor, a Maria partilhou comigo a sua visão sagaz, que só a afortunada conjugação da certeza da finitude, inteligência e clareza da consciência permite. A generosidade dessa partilha fez-me chorar. Com ela, não por ela.
A Maria, sempre pragmática, nunca esteve resolvida, nem segura, até que… agarrou a oportunidade que a doença lhe trouxera e se resolveu. Sabiamente. E morreu em paz, cheia de graça.
A Humanidade atravessará sempre os limites impostos pela doença e a morte à própria vida. Como sementes lançadas à terra, sob a ação insondável da Esperança e do Tempo — ingredientes sine quibus non —, a Humanidade brotará, mais cedo ou mais tarde, sempre no momento certo, renovada, noutras Marias. Predestinadas, mas não prontas, a lançarem-se ao caminho que também as agigantará.
Obrigado, M, pela sua última lição.
João Mendes Coelho*
- Médico psiquiatra e adictologista