O nosso país possui vários sistemas democráticos. No universo autárquico não existe fiscalização política porque não existe responsabilidade política. No Estado, bem diferente, a fiscalização política é estrutural e 100% eficaz: o Presidente da República, tendo por finalidade o normal funcionamento das instituições políticas, tanto faz essa fiscalização ao parlamento, como a faz ao governo e acompanha as políticas governativas mais amiudamente do que o parlamento, o que reforça o modelo. Na Região Autónoma, pelo contrário, há responsabilidade política, mas apenas perante o parlamento; a que acrescem dois órgãos do Estado, um externo e outro interno, cuja função é a fiscalização meramente da legalidade, num ou noutro caso apenas em situações contenciosas. Ou seja, se é compreensível as autarquias terem resquícios insignificantes de fiscalização governativa, já que, nomeadamente, não produzem leis, mas apenas regulamentos; já é incompreensível que o modelo da Região Autónoma não seja um irmão, com a dimensão própria, do Estado: porque ela faz leis e políticas governativas iguais à do Estado e até arreda a aplicação das leis deste e da União Europeia. Quer-se dizer: com um sistema democrático tão frágil, os partidos políticos e o jornalismo (por economia de espaço, engloba-se jornais e jornalistas) adquirem, se quiserem, um papel central na compreensão dos problemas num registo de consciência coletiva.
Os partidos políticos e o jornalismo têm uma função essencial: os primeiros são uma escola para aqueles que têm vontade de participar mais ativamente na política; sem eles a ausência de experiência derrotaria a normalidade e entraríamos na política tribal. O segundo é uma fonte de informação diária para manter a sociedade informada; sem ele os cidadãos continuariam tendo informações, mas em modo descontrolado, sem fontes fidedignas o que tornaria a sociedade precária pela falta de consciência coletiva. É por via desta importância que o Estado paga aos partidos para eles se manterem num registo de independência económica de modo a garantir uma escola a sério e dotada duma matriz vocacionada para o bem comum; e é pelo mesmo motivo que o Estado apoia o jornalismo, por um lado, no apoio ao transporte para que tenha um custo “igual” em qualquer parte do país para que os cidadãos lhe tenham acesso garantido, e assim trata-se dum um apoio indireto porque assim se vendem mais jornais; e por outra banda, apoia-o em projetos de investimento específicos assim como existem para as empresas de todas as áreas económicas.
Esse valor supremo que o jornalismo contém, por via disso mesmo, encerra uma responsabilidade suprema: se tem um modus operandi distante daqueles parâmetros anteditos, naturalmente que foge à regra. Continua sendo jornalismo, mas não cumpre a função. Ora bem, algo parecido se passa nos Açores quanto a um dos últimos atos assinados por António Costa no seu último dia de Primeiro-Ministro, na solicitação da verificação da legalidade do Decreto Legislativo Regional n.º 8/2020/A, de 30 março, o regime jurídico do processo de delimitação e desafetação do domínio público hídrico na Região Autónoma dos Açores dirigido ao Tribunal Constitucional. O facto é que por parecer de abril do Centro de Competências Jurídicas do Estado o Primeiro-Ministro fez uma assinatura como tantas outras que teve de fazer. Estava em causa a desafetação de uma parcela naquilo que é o domínio público marítimo, e concluindo, nomeadamente, que “nada impede os Açores de legislar sobre gestão do domínio público hídrico regional, contando que o não exceda e não interfira unilateral e inovatoriamente, como o fez, com parcelas próprias do domínio público marítimo do Estado”. Os partidos no parlamento regional, quase todos, e o Governo Regional, levantaram a voz afirmando que foi uma “atitude lamentável ter sido feito por carta e no último dia”; outro que tal atitude “revela que o país, e que alguns centralistas deste nosso país, continuam a achar que o nosso ativo, o mar…”; outro que faz “um protesto e uma censura à iniciativa deste antigo primeiro-ministro”; etc. O jornalismo descobriu um ponto essencial da vida autonómica e não vamos particularizar: um dizia que o “pior do que ser centralista, António Costa nunca gostou das autonomias regionais, conforme se prova, mais uma vez, pelo seu rancor até ao último dia do seu cargo, assinando já pela calada da noite o envio do pedido de fiscalização”; outro “qualquer Primeiro-Ministro, que no último dia de funções, já pela noite dentro, se dá ao trabalho de ter uma atitude destas contra a Região e contra os açorianos”.Estas alminhas de cristo vêem num simples ato de normalidade democrática uma coisa medonha; e de medonho, afinal, são as conclusões irrealistas.
Que os políticos o façam é atendível: a sua principal função, a avaliar os últimos anos da governação, é a queixar-se de que os outros não fizeram, que vão fazer, e que, quanto ao Estado, ele é centralista porque impede a região de governar bem; e assim, pois, a culpa da nossa incompetência é por culpa da incompetência dos outros. Os políticos deveriam concentrar-se na governação e deixar-se de galhardetes falsos que não têm nenhum valor político, e claramente não serve a dos insulares. Que os políticos o façam, até se entende face à mediocridade da política. Mas não se compreende que o jornalismo vá por esse caminho. Se os órgãos regionais têm a autonomia e nesse contexto exercem as suas funções em conformidade com a Constituição; por que motivo os órgãos do Estado não fariam o mesmo quanto às suas atribuições? Se a assinatura no último dia tivesse sido para autorizar o pagamento das dívidas da Região, claro está, o homem já seria o melhor do mundo. O jornalismo não se deve meter por estes atalhos de jornalismo inquietante; 1.º, porque apenas estão a fazer um favor ao governo; 2.º, porque o jornalismo deve dar sobretudo informação e quando der a opinião ela deve estar baseada na realidade a sério.
Para nós, se fosse apenas este o problema que apontamos até aqui, nem valeria a pena escrever este texto, ou tê-lo-íamos escrito nos anos oitenta. Mas há aqui um outro problema e que é um problema perigoso. Todos sabemos que a população açoriana é iletrada: desde logo porque 12% vive em privação severa, 26% está em risco de pobreza e a restante maioria vive sistematicamente em dificuldades para chegar ao fim do mês. Neste panorama por todos conhecida, é fácil adivinhar o efeito de notícias e opiniões esqueléticas em pessoas nestas precárias condições: se já vivem num mundo parco, ele ainda pior fica, porque além de fraco é virtual. Ou seja: com essa informação errada e com uma população sem capacidade para distinguir esse erro, o jornalismo está assim a contribuir significativamente para a pobreza dos açorianos. E isso é preocupante: quanto mais pobre for a população, mais pobre será o jornalismo. Não será que as dificuldades do jornalismo estejam nesse problema?
Arnaldo Ourique