A primeira vez que me cruzei com o livro de cariz autobiográfico de Margarida Victória foi durante o curso de Medicina, quando uma amiga me sugeriu que o lesse, disse-me que eu ia gostar. E gostei, muito. Deslumbraram-me os relatos de tão diversas e ricas vivências, que achava totalmente inacessíveis a uma mulher nascida em São Miguel, no início do século XX. Nessa altura deliciei-me a imaginar longos passeios em lagos e castelos na Suíça, provas de vestidos na Balmain ebailes esfuziantes no Cairo. O livro regressou à estante dela e ocupou um lugar ténue e remoto na minha memória.
Voltei a pensar no livro alguns anos depois, já durante a especialidade de Psiquiatria, numa discussão com um colega que também o tinha lido. Perguntou-me o que achava sobre a possibilidade de um determinado diagnóstico (vícios do ofício). Pensei que teria de reler o livro, para prestar mais atenção à expressão de sofrimento e menos aos detalhes glamorosos. O assunto poderia ter ficado por ali, mas nessa altura, por ocasião de uma nova edição do livro de Manuela Gonzaga, voltava-se a falar da história de Maria Adelaide, a filha do fundador do Diário de Notícias, que fora considerada louca e incapaz por ter fugido com o motorista da família. Encontrando paralelismos entre as duas biografias e motivada para participar num congresso sobre História da Loucura, propus-me a voltar a ler a obra e analisá-la.
Uma leitura mais atenta (e completa, porque descobri a existência do segundo volume) deixou-me perplexa com o que me passou ao lado, aquando da primeira leitura. Foram tantas as provações por que passou, uma “vida íntima de sofrimento”, como a própria descrevia. Este sofrimento constante, em contraste com a sua exuberância e necessidade de expansão, fez-me pensar num diagnóstico. Um diagnóstico para o qual contribuem muito as noções culturais do que é ou não expectável e aceitável, e a que se associa um viés de género. Aquele trabalho serviu-me mais para refletir sobre a própria conceção de doença e sobre a indefinição dos limites entre o normal e o patológico do que para uma psicobiografia da Marquesinha, como era carinhosamente tratada. Para que serve e qual a validade de um diagnóstico a esta distância? Depreendo, pela sua descrição, que não tenha sido apenas o diagnóstico a mantê-la internada contra a sua vontade na Suíça; a obrigá-la repetidamente a demonstrar a sua capacidade de se autodeterminar, como acontecera também com Maria Adelaide.
Voltando a ler o livro recentemente, renova-se-me o interesse, agora relacionando os acontecimentos com a evolução histórica da sexualidade, indissociável da história da mulher e da doença mental. Penso no papel que séculos de obscurantismo ainda têm na vivência da saúde sexual, para as mulheres. E a história de Margarida é ilustrativa do trauma: abuso, uma cirurgia falsa para tratar um vaginismo, a descrição visceral de um aborto. E por fim, todo um percurso de incompreensão e intolerância à sua natureza: expansiva, sensual e livre.
Com tantas perspetivas potenciais de análise desta obra, é difícil entender a inacessibilidade da mesma. Contaram-me que alguns dos seus livros teriam sido queimados na ilha, por vergonha.
Acho que o orgulho devia motivar novas edições. Merecemos conhecer esta mulher que viveu constantemente em luta por encontrar melhor, em permanente defesa contra os mais inusitados insultos. Esta mulher que, por volta da sexta década de vida, finalmente sob alguma aura de tranquilidade e amor, teve a coragem de partilhar a sua história, mesmo que isso a levasse (figurativamente) à fogueira.
Mariana Bettencourt *
- Psiquiatra e Sexóloga clínica