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«Crowdfunding» editorial e mercado da arte

Quem não tem cão caça com gato e É preciso um pouco de tudo para fazer um mundo são adágios populares que podem inspirar quem, em meios adversos e contra toda a sensatez e evidência, persiste em criar ou produzir cultura. Este artigo é, por isso, dedicado a ideias para escapar à tenaz de subsídios e patrocínios como condição para se fazer seja o que for (mas livros em particular) e para sacudir essa longa, ressequida, ultrajante dependência criada e mantida por poderes públicos para quem a plena liberdade dos criadores será um estorvo, ou um perigo, tanto quanto o jornalismo qualificado (e cito). Uma sociedade dinâmica, capaz de gerar por si os meios de que necessita para as suas realizações, deixará governos e municípios sem aqueles atributos de tutela, escrutínio e até favor que são todo o seu nefasto privilégio. Demonstrar ser possível dispensar subsídios públicos — que tantas vezes chegam tarde e a más horas, se é que chegam —, porque particulares se associaram informalmente para financiar algo que entenderam como interessante concretizar, e conseguir que esse crowdfunding se institua e consagre como sistema alternativo, representaria uma grande maturidade social, tanto quanto a solução imediata para muitos impasses e frustrações, que travam a expressão da criação cultural contemporânea.
Editores de qualidade como os da E-Primatur, por exemplo — mas há também projectos muito especiais noutras editoras, como um livro sobre arquitectura paisagista de Ilídio Alves de Araújo na Afrontamento, em 2022, que no fim incluiu a lista dos compradores prévios aderentes —, imaginam publicações que submetem à apreciação preliminar dos seus leitores que, por pré-compra, ou subscrição, atingido o número de adesões considerado necessário, cobrem a despesa da impressão dum livro e depois de outro, e assim consecutivamente. Não há nenhuma razão para que este modelo não seja transposto para os Açores, permitindo às suas livrarias-editoras, com clientes habituais, e aos seus institutos culturais, com três centenas de sócios — ou seja, beneficiando de redes já instituídas e de contactos de proximidade —, fazerem o que querem sem depender de meses de espera pelo sim ou pelo não das instâncias públicas e da sua ainda prevalecente burocracia, a que só o único editor verdadeiramente independente virou costas há muito e com inteira razão.
Diria mesmo que este é o momento para ensaiar essa alternativa, face à precaridade do Orçamento regional e ao rombo nas finanças públicas criado pelo desastre no hospital de Ponta Delgada e pelos custos da sua urgente reconstrução, grande prioridade regional.
Apesar da abundante produção de livros nos Açores, há ainda um enorme elenco de obras e autores a resgatar do esquecimento e a revisitar em publicações com estudos de contextualização. Na ausência duma Imprensa dos Açores, inspirada no modelo e desígnio da Imprensa Nacional, de Lisboa, que assegurasse a circulação permanente do cânone literário e histórico regional, como há tempos alguém me apontou — mas sobre a qual tenho as maiores dúvidas, porque não vejo existir qualificação interna de quadros profissionais à altura dessa especialização oficinal —, o crowdfunding pode vir a ter papel relevante nessa restituição, inclusive a de monografias locais de etnografia e história da arte que melhor representem a diversidade das ilhas açorianas, uma a uma consideradas.
O caso absolutamente exemplar de na Ilha das Flores estar a nascer uma campanha de subscrição pública para aquisição, a duas bibliotecas universitárias norte-americanas, de cópia dum lote de fotografias feitas nos Açores no século XIX, prova-nos que iniciativas privadas e de associação podem suprir a indiferença ou a incapacidade pública de zelar, em primeira instância, por património comum. Se acções deste tipo triunfarem e se repercutirem, mais e mais, todo o ambiente da vida cultural vai curar-se da habitual mão estendida pedindo recursos públicos, aliás reduzidos. É um desmame lento e gradual mas que, numa década, irradicaria consideravelmente o desconforto e a inércia instalados. E de modo algum estou a defender que a DRAC deixe de apoiar a edição de livros nos Açores. Estou a dizer, muito convictamente, que esta não pode depender daquela no modo e no grau de incerteza em que hoje depende, e que pelo exposto tenderá a agravar-se. Só não vê quem não quer.
Outro tópico que tem chamado a minha atenção é o facto de em leilões nacionais obras de arte dos Açores terem aparecido a bons preços, sem que museus regionais as possam adquirir para os seus fundos, quer por falta de meios próprios para tal, quer pela exigência de extrema brevidade sobre decisões superiores que demoram. Essa dispersão não é vantajosa para a cultura açoriana. Há, por outro lado, produção nas ilhas que não tem, creio, suficiente mercado de arte ou circulação expositiva em galerias e feiras, o que penaliza os artistas. Deste modo, por que não incentivar, através de facilidades fiscais relevantes e duma campanha junto das Associações do sector, hotéis, restauração, turismos de habitação e alojamentos locais a decorarem as suas instalações com obras de autores e motivos açorianos? (E que bom que é jantar no Alcides e ver o painel de Domingos Rebêlo ao fundo…) Além do óbvio e imediato benefício dos artistas, seria esta uma forma hábil de mostrar a quem visita as Ilhas a sua criação artística, desde o melhor artesanato à fotografia, desde a pintura de paisagem à arte contemporânea que preste.
Como aqui escrevi há pouco, só medidas concretas mudam as coisas. E o debate de ideias é o melhor motor de mudança. Custa assim tanto disporem-se a isso?

Vasco Rosa

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