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Vulnerabilidades que só os humanos têm

“Viajamos pelo mundo, dele fizemos o nosso lar, sem fronteiras nem passaportes, voando nas asas da utopia, criamos encontros, publicamos livros, unimos pontes e continentes, e quando estávamos a chegar ao cume dos nossos sonhos, abriu-se o alçapão da vida e sem apelo nem agravo, sem pedir licença, sem dó nem piedade sugou-te e deixou-me suspenso neste abismo que hoje são os meus dias, iguais e vazios.”

Passaram cinco meses desde que a minha mulher me deixou e agarro-me como um náufrago a fotos e memórias dos anos cúmplices que vivemos.
Se ouvires uma voz a chamar o teu nome, podes parar de cair, a única forma de ser invulnerável é ser quase totalmente vulnerável, mas quanto mais vulnerável se é, mais capaz se é de sofrer as dores, humilhações e desaires, e assim serás capaz de enfrentar qualquer audiência.
As pessoas devem comprometer-se a contar a sua história sem cuidarem do número de pessoas que a vão ler ou ouvir. Essa a rota e a visão. Com a Nini encontrei a minha razão de estar no mundo, era o meu mundo, o dela, o nosso, e era um mundo lindo, nadávamos nos dias contra marés etsunamis, bebíamos o chá doce de todos os anos juntos, a que ela acrescentava sempre dois pacotes de açúcar pois nunca era suficientemente doce.
Acordávamos com o chilrear dos pássaros, por entre ventos e tempestades, chuvas e derrocadas, marés gigantes e nevoeiros cerrados, nesta bruma húmida que caía pelas paredes da casa.
Viajamos pelo mundo, dele fizemos o nosso lar, sem fronteiras nem passaportes, voando nas asas da utopia, criamos encontros, publicamos livros, unimos pontes e continentes, e quando estávamos a chegar ao cume dos nossos sonhos, abriu-se o alçapão da vida e sem apelo nem agravo, sem pedir licença, sem dó nem piedade sugou-te e deixou-me suspenso neste abismo que hoje são os meus dias, iguais e vazios.
Agradeço os anos juntos, as alegrias, as conquistas imensas, salvaste-me doutros abismos sem fundo, só com a tua presença e amor, e agora quem me vai salvar desta solidão involuntária, em que apenas me resta ver as fotos e os filmes de todos os momentos alegres que criamos nos nossos dias, sabendo que não voltam. Não voltam mais, assim como tu nunca mais voltas, e só para mim estás em espírito presente, invisível para todos, e só eu te sinto e te escuto enquanto espero a data de me juntar a ti, de novo, para acabarmos o que começamos.
Não me canso de dizer que os dias sem ti aqui são vazios e inúteis, mas as pessoas dizem para ter força e acreditar, acreditar em quê? Nesta solidão? Nesta dor? Neste tormento que é acordar, repetir novas rotinas sem nexo nem razão, além de sobreviver. Sem metas, além de terminar os teus livros e dá-los a conhecer…
A minha vida real já não vai recomeçar, não há novos começos nesta idade, serei mais um zombie a penar por entre a espuma dos dias húmidos deste arquipélago.
Nestas circunstâncias como querem que eu esteja bem, e tenha forças quando a Nini era a minha musa, a minha fonte de alimentação, a luz que me alumiava as noites. Dizem todos eu com o tempo passa, mas os que estão nesta situação há mais tempo, dizem que com o tempo não passa…. Pode aliviar mas nunca passa, nunca se deixa de pensar no que se viveu junto, no que se construiu, nos vazios que preenchemos juntos.
O mundo que criamos só era belo para nós, longe de guerras, fomes e demais tragédias e agora já não existe, estou rodeado por mil e uma guerras, que já não me parecem tão longínquas e podem chegar até aqui.
Dizem-me para ter forças mas onde vou eu buscá-las se era ela quem mas fornecia todos os dias e me fazia crer que viver era belo. Dizem para recordar os bons momentos juntos e muitos foram, mas para quê se não os podemos repetir, nem replicar, nem nunca mais teremos momentos desses e muito menos eu os terei. Dizem-me para ser positivo, há dias, até a pedicura me falava na reciclagem das almas a que chamava REENCARNAÇÃO…
Assim passei mais umas horas a ouvir a história e música de Colin Hay (Men at work) meu vizinho nos anos em que vivi em Melbourne (1993 e 1994) enquanto alinhavava estas palavras que não serviram de catarse nem de exorcismo, entrecortadas pelas sempiternas lágrimas de saudade que teimam em aflorar aos meus canais sem serem chamadas.
As fotos passam em frente na moldura digital, alegro-me e sorrio com o teu sorriso, a tua alegria de viver (sorris em mais de 90% das fotos, enquanto eu o faço apenas quando o pedes para a foto), recordo os passos que demos nas 9 ilhas, Canadá, Brasil, Austrália, China e Macau e os 1001 sítios por onde passamos, nas aldeias perdidas de norte a sul do país que descobrimos e redescobri contigo desde 1995. As férias, os natais, os dias de anos, os colóquios e todos os pequenos momentos, café aqui ou ali, os meus cigarros incessantes até dezembro 2022 ou os teus até abril 2010…e depois surgem as lágrimas por não poder regressar e retraçar esses passos todos contigo, a não ser na memória e na recriação desses 29 anos. Ser viúvo é pior do que 25 divórcios litigiosos…Tento imaginar o que quererias que eu fizesse nesta situação e penso que quererias que continuasse a organizar os Colóquios da Lusofonia e a escrever as minhas crónicas.. .

Chrys Chrystello*

*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

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