Quem me conhece deve estar bem recordado de como me afirmo sempre de nacionalidade australiana, e como nos colóquios da lusofonia até 2016 metia sempre a bandeira australiana na mesa… mais tarde por osmose com o povo açoriano descobri que tinhas as raízes transmontanas, e passados vinte anos sinto-me açorianizado.
Nestes cinco meses desde a morte da minha mulher e eterna companheira de 29 anos de cumplicidades sinto que tenho de continuar a viver e não posso estar aniquilado e anquilosado neste luto, nesta dor que não cessa nem diminui, apenas as lágrimas são mais escassas, mas a dor continua como punhaladas no coração e tentei imaginar o que seria o conselho dela para sair deste fosso. Creio que me mandou viver e continuar a usufruir desse dom da vida enquanto pudesse, fazendo o que teria feito se ela ainda fosse viva, fazendo, quiçá, o que nos faltou fazer, ou que fomos adiando por via do agravar da doença dela. E assim, decidi usufruir do subsídio de férias que virá no fim do mês e ir aos anos da filha (a 10 de junho) como os dois fizéramos no ano passado. Vi a filha e as netas, falamos de memórias que não voltam mais e prometemos continuar, talvez, no próximo ano na mesma data.
Escrevo da Eucísia, não da casa oitocentista dos meus bisavós, hoje uma ruína a cair, (foto) e que tanta recordação evoca no meu livro ChrónicAçores vol. 5, Liames e epifanias autobiográficas, mas da Quinta, que era do meu tio-avô (Acácio Manuel Magalhães) e hoje é da filha (Beatriz Licínia, que com o filho João e nora, gerem agora a original Quinta da Bela Vista Agroturismo /Bela Vista Silo Housing (imagens em https://youtu.be/SD0oKfCLzTc ).
Tem 2 silos de grão e forragem com 4 habitações no total, sobranceiros à aldeia, equipados de todos os luxos modernos, simples mas eficazes, que me fazem esquecer o buraco nas traves de madeira que era a original retrete, a casa dos bisavós, em plena varanda das traseiras com vista para o vasto Vale da Vilariça, citado inúmeras vezes nos meus livros.
Era nessa varanda que me recordava de ter lido Júlio Diniz, Camilo, e outros e a edição completa oitocentista dos livros de Jules Verne entre os 10 e os 15 anos…
As férias passadas lá na aldeia, entre os 2 e os 17 anos, eram caraterizadas, a partir dos 5 anos por serem na companhia de avós e tias, sem os pais e ocupam cerca de 80 páginas do livro.
Da parte de manhã a prima Beatriz (prima direita da minha mãe apesar de ser mais nova um ano do que eu) levou-me a conhecer os 10 000 m2 da Quinta das Feiticeiras (a nossa parte da herança) em frente à parte dela e que é uma enorme colina depois da Eucísia, a uns 2 ou 3 km rumo à Junqueira. Desconhecia a sua existência até a herança da minha mãe e avó… o mencionar…
Habituado à vista da casa dos avós, sobre o Vale da Vilariça e em frente a algumas casas da aldeia de Sambade, descobri novos horizontes no pátio deste silo sobranceiro à aldeia, que permite vislumbrar montes outrora escondidos, hoje abertos e esventrados pelo IC5 e outras vias rápidas e vias normais.
O IC5 vem desde as cercanias de Alijó rumo a Miranda do Douro encurtando, e muito, as viagens de quase metade de um dia entre o Porto e a aldeia.
Lembro-me que de Alfândega da Fé ao Mogadouro (onde vivia outra tia-avó) eram 2,5 a 3 horas e hoje andará por30 minutos ou menos…
Para vir do Porto à Eucísia, evita-se descer de Macedo de Cavaleiros a Grijó de Vale Benfeito (terra do professor Adriano Moreira) passando depois pela Serra de Bornes (em cuja Pousada ficamos há mais de 25 anos).
Adriano Moreira (que fruto da sua primeira ida aos colóquios em 2008) acabaria por ofertar o seu espólio a Bragança (onde criaram uma segunda Biblioteca Municipal com o seu nome. Ele esteve segunda vez connosco nos colóquios da lusofonia em 2009 em Bragança, a seguir foi nos Açores (Lagoa) e depois em Belmonte em 2019, antes de falecer (outº 2022).
Esta vinda às berças estava há muito sonhada por nós, para a fazermos no fim de um colóquio em Belmonte, mas a minha mulher (com o seu enfisema pulmonar) acabava sempre tão cansada que nem a viagem aguentaria, mesmo dormindo na Quinta, seguindo depois para um almoço no Poças em Bragança como havíamos idealizado… No ano passado fomos de propósito nos anos da filha, lá a Bragança almoçar e foi muito cansativo para ela.
Efetuo assim uma viagem revivalista que acabamos por não cumprir. Em boa hora satisfizesse desiderato e vim conhecer este aprazível local de turismo rural na Quinta de tantas recordações infantojuvenis e adolescentes. Só tenho pena que a minha mulher já não esteja aqui a usufruir do mesmo que eu, até porque ela gostava desta ruralidade.
Ainda não fui lá abaixo à aldeia ver a ruína que herdei e para a qual sonhei (sem nunca ter meios) reconstruções e modernizações várias…Também não fui lá acima à capela de São Sebastião, dos míticos pôr-do-sol, captados em tempos a preto e branco por um “caixote” quadrado da Kodak que hoje está exposto na minha sala de estar nos Açores, e ainda quero ir ao Sendim da Ribeira, terra dos meus primos que vivem em Ponta Delgada desde o 25 de abril, depois de saírem apressadamente da colónia angolana onde viviam.
Tudo isto são recordações indeléveis que me acompanharam por Timor, Macau e Austrália e me marcaram para sempre pois as revivo e rememoro a todo o passo.
São 15 horas, já almoçamos e ainda não desci à aldeia nem aos outros locais onde pretendo ir e delineei há anos fazer visita de romagem de saudade, pois reminiscer é viver. Ainda bem que vim e descobri onde ficava a terras das feiticeiras que herdei e desconhecia.
Até agora limito-me a evocar cheiros, imagens e sons doutras eras, relembro memórias várias que tentei descrever nos meus livros ChrónicAçores. Sei que esta vinda que tínhamos planeado, pode ser (provavelmente) a última e quero guardar as imagens para me fazerem companhia nos dias que me faltam, como as recordações várias doutras eras (há 50 ou 60 anos) me acompanharam naqueles países distantes.
Aproveito para curtir o ruído destes silêncios profundos, parece que a aldeia não tem vivalma, até que ouço um helicóptero (já o ouvira esta manhã). Dizem-me que deve ser mais uma evacuação médica do INEM que isto por aqui a saúde não tem grandes centros nem urgências. Até a saúde está desertificada como todos estes locais, sem serviços nem gente.
Ter um AVC aqui é meio caminho andado para o cemitério.
Há estradas, vias rápidas, as velhas nacionais 215 e a 315, foram asfaltadas, mas não há gente nem movimento, e este é tão diminuto como há 60 anos. Desde esta manhã senti e vi uma carrinha (seria a do pão?), um táxi de Alfândega e apenas 3 viaturas entraram ou saíram da Eucísia (mas podiam ir ou vir de Santa Justa, que agora a Eucísia já não é um buraco sem saída como nos meus tempos áureos). Uma das viaturas era uma moto-quatro com atrelado e coisas agrícolas.
Agora que há meios, não há gente para usufruir deles que tanta falta faziam quando estas férteis terras produziam tanta agricultura (que a Europa suspendeu), enquanto hoje custa ver estas encostas pejadas de oliveiras, inúmeras árvores de frutos, sem vivalma para as apanhar.
Tanto que isto podia ser um celeiro da nação e nem gente há para tratar delas. Dizem-me que a amêndoa de há 2 anos ficou armazenada sem se vender por preços irrisórios que nem cobriam as despesas da apanha.
Continua
Chrys Chrystello*
*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713