Na semana que passou, assisti, perplexa, ao último Plenário, antes da interrupção para férias, da Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Mais perplexa fiquei, quando foi aprovada, em plenário, pelos partidos que sustentam o governo, PSD, CDS-PP, PPM e CHEGA, uma proposta deste último partido que, na minha modesta opinião, contradiz tudo o que defendemos, enquanto sociedade democrática, livre e consciente, especialmente, quando estamos perante um Governo que, no dia 12 de julho, se assumiu como um Governo Humanista.
No dia 09 de julho, a bancada parlamentar do CHEGA sugere que se altere os critérios de admissão e priorização nas vagas das respostas sociais, nomeadamente creche, creche familiar, amas, propondo que seja conferida prioridade às crianças provenientes de agregados familiares cujos progenitores ou encarregados de educação tenham vínculo laboral, argumentando com o facto real da impossibilidade de prestar cuidados necessários aos seus filhos durante o horário de trabalho. Aparentemente, parece justo, plausível e consensual: de facto, estes pais precisam dum espaço, onde deixar os seus filhos, porque estão ocupados a trabalhar. Porém, esta medida não responde às verdadeiras necessidades dos açorianos, pondo em causa todos os documentos internacionais e nacionais que defendem os mais vulneráveis, neste caso as crianças, criando um princípio de discriminação inaceitável, para não dizer abominável, ainda mais, quando estamos a falar da Região Autónoma dos Açores, considerada uma das zonas mais pobres de Portugal, para não dizer da Europa.
Conhecendo a realidade, como todos conhecem (somos uma região extensa territorialmente, mas pequena em população), sabemos que temos uma parcela da população muito vulnerável, devido a vários constrangimentos, onde se destacam o social, o económico que conduzem a várias situações familiares disfuncionais, onde as crianças surgem como as primeiras e mais atingidas vítimas. São elas que necessitam de maior apoio para se poderem desenvolver de forma digna e apta a prosseguir uma vida com o mesmo acesso às oportunidades. Este ‘elevador social’, capaz de alavancar e sustentar uma mudança no paradigma real é a ESCOLA, especialmente, a partir dos primeiros anos, onde se destacam as creches, como suporte ao crescimento e desenvolvimento físico, cognitivo e social.
Penso que alguns cidadãos, que juraram representar e defender os interesses e a população açoriana se esqueceram, rapidamente, da realidade em que vivemos ou, então, vivem numa redoma de vidro muito fosco.
Comecemos pelos documentos que defendem os direitos alienáveis das crianças. Não, não vou recuar a 1924. Basta-me ir à Declaração dos Direitos das Crianças, proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 1386 (XIV), de 20 de novembro de 1959, onde, no seu Preâmbulo, afirma-se: “Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, a sua fé nos direitos fundamentais, na dignidade do homem e no valor da pessoa humana e que resolveram favorecer o progresso social e instaurar melhores condições de vida numa liberdade mais ampla; […] Considerando que a Humanidade deve à criança o melhor que tem para dar”, percebemos que a ONU imputa a responsabilidade da defesa das crianças a todos, à humanidade, estruturada através das várias nações que compõem o mundo. Ao lermos estas palavras, percebemos que algo vai mal na decisão do dia 12 de julho, na ALRAA. Até porque quase todos os princípios elencados neste documento são ‘abalroados’ pela medida aprovada. Senão vejamos:
Princípio 1.º “A criança gozará dos direitos enunciados nesta Declaração. Estes direitos serão reconhecidos a todas as crianças sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou outra da criança, ou da sua família, da sua origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou de qualquer outra situação.” Aqui, percebemos que a condição familiar não pode ser um princípio de discriminação, entre muitos outros anunciados.
Passemos ao Princípio 2.º (não se preocupem, não vou citar todos os princípios, por um lado, porque não será necessário, por outro, porque tenho outros argumentos a anunciar e, sim, o negrito é da minha autoria e tem a intencionalidade de chamar a atenção total para as palavras utilizadas.) “A criança gozará de uma proteção especial e beneficiará de oportunidades e serviços dispensados pela lei e outros meios, para que possa desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade .Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança.” Todo o artigo a negrito, porque todo ele é fundamental para percebermos não só da importância que se dá à proteção de TODA e QUALQUER CRIANÇA, recaindo a responsabilidade de defesa nas LEIS que se promulgam, claro, no SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA (letras capitais da minha autoria com intenção de frisar a tese defendida: TODA E QUALQUER CRIANÇA TEM OS MESMOS DIREITOS E NÃO PODE SER DISCRIMINADA POR NENHUMA RAZÃO, nomeada a situação profissional ou económica dos seus progenitores, cabendo a quem governa a defesa desses direitos e não coartá-los, limitá-los ou diferenciá-los, como aconteceu, na semana que passou, na RAA.
Vou dar um salto ao Princípio 6.º “…A sociedade e as autoridades públicas têm o dever de cuidar especialmente das crianças sem família e das que careçam de meios de subsistência. Para a manutenção dos filhos de famílias numerosas é conveniente a atribuição de subsídios estatais ou outra assistência.” Mais claro do que isto, é difícil. Aqueles que não têm meios de subsistência, leia-se, por exemplo, pais que não têm trabalho pelas mais variadíssimas razões: saúde, dependência, desestruturação familiar ou, até, por abandono,…. O que foi aprovado, na ALRAA, contraria tudo isso, agravado pelo que defende o próximo princípio.
Princípio 7.º “A criança tem direito à educação, que deve ser gratuita e obrigatória, pelo menos nos graus elementares. Deve ser-lhe ministrada uma educação que promova a sua cultura e lhe permita, em condições de igualdade de oportunidades, desenvolver as suas aptidões mentais, o seu sentido de responsabilidade moral e social e tornar-se um membro útil à sociedade. O interesse superior da criança deve ser o princípio diretivo de quem tem a responsabilidade da sua educação e orientação, responsabilidade essa que cabe, em primeiro lugar, aos seus pais. A criança deve ter plena oportunidade para brincar e para se dedicar a atividades recreativas, que devem ser orientados para os mesmos objetivos da educação; a sociedade e as autoridades públicas deverão esforçar-se por promover o gozo destes direitos.” Lá tive que colocar todo o princípio a negrito, porque, embora, impute a responsabilidade da educação aos pais, não escusa as autoridades, os governantes e instituições públicas no esforço da concretização destes princípios, situação muito recorrente, na nossa Região e, afinal, é para isso que elegemos os nossos representantes: para nos defenderem e criarem condições para o nosso desenvolvimento, coisa que esquecida na semana passada. Para não vos cansar mais, terminarei esta parte da minha preleção com o último princípio.
Princípio 10.º “A criança deve ser protegida contra as práticas que possam fomentar a discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Deve ser educada num espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade universal, e com plena consciência de que deve devotar as suas energias e aptidões ao serviço dos seus semelhantes.” Não pude deixar de sublinhar todo o princípio, porque ele resume a essência do documento e aponta para outro documento, de extrema importância para os portugueses, a Constituição da República Portuguesa, manifesto que, entre outras coisas, defende precisamente TUDO o que foi dito anteriormente.
Mais me indignou a medida, dado que, nos últimos anos, em Portugal, várias lutas parlamentares levaram à aprovação de muitas medidas em defesa das crianças, sem discriminação alguma, muitas delas propostas pela bancada do Partido Comunista Português, sendo uma das importantes a medida das creches gratuitas em Portugal, em vigor desde setembro de 2022,porém, em 2023, alargada às instituições do setor privado, fazendo com que mais crianças possam beneficiar desta ajuda estatal. A par da gratuitidade das creches, da parte do PCP, também foi defendido a criação de uma rede pública capaz de suprir a carência de vagas que se sente no nosso país – carência essa que, na prática, significa a negação do direito à creche e da sua gratuitidade a milhares de crianças e famílias. Isto é, o ESTADO NÃO está a dar a resposta a que se comprometeu e, nos Açores, acontece o mesmo, agravando-se com medidas que considero altamente discriminatórias e pouco humanistas.
Em conclusão [muito mais haveria de dizer, deixaremos para outra página) podemos considerar que, em primeiro lugar, nem todos os que dizem que defendem as populações e os mais vulneráveis e frágeis, o fazem; em segundo lugar, há prioridades e uma das prioridades é as crianças, especialmente as crianças açorianas que são o futuro da nossa região; em terceiro lugar, depois de 50 anos de Liberdade, Democracia, parece-me que os ‘velhos’ mas não caducos princípios da Revolução Francesa, que persistem, ao longo dos séculos, em todas as revoluções pela liberdade e Democracia, LIBERDADE, IGUALDADE e FRATERNIDADE estão a diluir-se nas Ilhas de Bruma, nos últimos tempos, por isso perguntamos: Será que o ‘humanismo governativo açoriano’ se esqueceu da HUMANIDADE?
Judite Barros *
- Professora do Ensino Secundário