“Nos anos 50 do século passado, o escritor viveu uma experiência idêntica à dos homens e mulheres do nosso tempo: o pluralismo axiológico reinante exige repensar os valores e a sua hierarquização para não cairmos num niilismo onde acabará por dominar a lei do mais forte.”
Por razões várias o autor de Mau Tempo no Canal sempre chamou a minha atenção. Em primeiro lugar porque, como ele, sou praiense, nascido e criado na Praia da Vitória, onde, pela primeira vez, o vi no fim de uma missa na Igreja Matriz, onde ele tinha ido com sua mãe. Em segundo lugar, porque desde sempre houve uma relação entre o escritor e a minha família. Relativamente à minha família paterna, foi significativa para mim uma conversa que tive com ele em 1977, durante a qual me pediu uma fotografia de meu avô Luís porque, justificou, “o seu avô, mestre Luís Badalo, foi muito importante para mim”, pelo que queria ter a foto dele no escritório, na mesa onde tinha as dos seus professores.
Da família do lado materno, o meu tio Francisco foi companheiro de carteira do Nemésio na escola primária e minha mãe tinha por ele uma grande admiração. Quando o visitei pela primeira vez na sua casa em Lisboa, na Rua Sociedade Farmacêutica, à despedida recebi das suas mãos, com dedicatória, o livro O Pão e a Culpa, em que Nemésio fazia referência ao meu avô Luís e também ao meu tio António, que emigrara para o Brasil. Sempre que Vitorino Nemésio visitava este país e estava no Rio, frequentava assiduamente a casa de meu tio. Aliás, no Corsário das Ilhas, cita o seu nome na crónica “O Espírito Santo do Encantado” (p. 198).
Não são, contudo, apenas as razões do género das referidas acima que me levam a estar atento ao que vai aparecendo de e sobre o escritor açoriano. Sou grande admirador da sua obra e, tal como me disse fazer o Prof. João Lobo Antunes, numa conversa sobre a obra nemesiana, compro tudo o que encontro de e sobre ele.
Volto, pois, nesta crónica, ao grande poeta e prosador, porque saiu, em dezembro de 2023,o oitavo volume da sua “obra completa” que está a ser publicada em parceria pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda e pela Companhia das Ilhas, das Lajes do Pico, numa edição dedicada ao grande público [NEMÉSIO, Vitorino – Obra Completa. Corsário das Ilhas. O Retrato do Semeador. Lisboa; Lajes: Imprensa Nacional-Casa da Moeda; Companhia das Ilhas, 2023]. O sétimo volume saiu em dezembro de 2021. Naturalmente a pandemia deve ter perturbado a programação das editoras; esperemos que a cadência da publicação retome o ritmo inicial.
O volume vindo agora a lume reúne o Corsário das Ilhas e O Retrato do Semeador, dois livros de crónicas saídos na Bertrand, o primeiro em 1956,e o segundo, em 1958, umas inicialmente publicadas principalmente no Diário Popular, de Lisboa, e outras lidas aos microfones da Emissora Nacional de Rádio Difusão (p. 27).
Corsário das Ilhas, como escreve Nemésio na “Advertência”, “é fruto de duas viagens aos Açores (1946 e 1955) e da preocupação natural do espírito do autor por essas ilhas, a qual sempre e por vários modos nele tendem a resolver-se por escrito” (p. 27). O livro abre com uma secção titulada “Introito à Madeira e Açores” em que é feita uma descrição das hoje “Regiões Autónomas”, apresentando a sua localização geográfica, as suas características e uma súmula da sua história. Seguem-se as crónicas de viagem propriamente ditas: “Primeiro Corso (1946)”, “Histórias de Mateus Queimado”, “Segundo Corso (1955)” e, por fim, “Corso Errático”. A leitura do livro proporciona uma viagem pela história dos Açores e acompanha a evolução verificada nas ilhas até ao fim da década de 60 do século passado. O primeiro corso foi feito em 1946, logo no fim da Guerra de 39-45, que levou ao aparecimento da Base das Lajes, na Ilha Terceira, onde os Estados Unidos da América tinham um forte contingente militar que teve um impacto enorme na Região e, de um modo especial, na Terceira, onde o escritor viveu até aos seus vinte anos. O número de portugueses que passaram a trabalhar na Base, como se dizia, era muito significativo e fomentou uma corrente migratória das outras ilhas. Toda esta realidade encontramos retratada nas crónicas. Para além disso, na leitura dos textos, vamos descobrindo abundante reflexão do autor sobre as realidades que vai descrevendo. Alguém disse que em Mau Tempo no Canal estão os Açores todos. Penso que se pode dizer o mesmo do Corsário das Ilhas.
A temática das crónicas do outro livro recolhido neste oitavo volume da obra completa, O Retrato do Semeador, é totalmente diferente. Em Vitorino Nemésio. À Luz do Verbo [Lisboa: Editora Vega, s. d. p. 32], José Martins Garcia diz que neste livro o escritor “recolhe as meditações resultantes [de uma] crise religiosa” que vinha de trás e se agudizou em 1950. Ora, terminada a Guerra, a sociedade entrou numa fase de pluralismo cultural, e, consequentemente, moral, cada vez mais acentuado, que exigia um repensar dos valores. Não admira, pois, que um intelectual da envergadura de Nemésio se sentisse confrontado com a necessidade de repensar a escala de valores que tinha herdade da sua formação católica, sugerida na dedicatória do livro: “À Memória do P.e Francisco da Rocha de Sousa (1865-1917), Vigário de Santa Cruz da Vila da Praia da Vitória” (301), figura quase lendária que permaneceu na memória dos praienses e foi marcante na formação de Nemésio que o descreve no primeiro texto com o título, precisamente, “O Retrato do Semeador” (303-307).As crónicas reunidas na obra, são uma sucessão de reflexões, “resolvidas por escrito”, sobre os valores ético-morais que devem moldar o viver humano, não em defesa de um qualquer tradicionalismo, mas na procura do sentido moral, raiz da dignidade humana. Para que o pluralismo não desemboque num relativismo radical é necessária uma reflexão para descobrir as razões da hierarquia dos valores pessoais e da sociedade, isto é, uma reflexão que procure fundamentar, justificar, encontrar a razoabilidade dessa escala de valores e da sua vivência.
São variadíssimos os motivos das reflexões de Vitorino Nemésio nestas páginas: datas significativas do calendário litúrgico católico que pautava a sociedade em que foi educado, efemérides, festas, a leitura de romancistas e pensadores, questões de atualidade política e muitas outras. Nos anos 50 do século passado, o escritor viveu uma experiência idêntica à dos homens e mulheres do nosso tempo: o pluralismo axiológico reinante exige repensar os valores e a sua hierarquização para não cairmos num niilismo onde acabará por dominar a lei do mais forte.
Para concluir esta crónica, três razões para ler este oitavo volume da obra completa de Vitorino Nemésio: primeira, ler o Corsário das Ilhas é fazer uma viagem inesquecível aos Açores de antes da autonomia político-administrativa, o que é fundamental para compreender os Açores dos nossos dias; segunda, a leitura de O Retrato do Semeador permite repensar com Nemésio a vida de hoje, numa sociedade riquíssima no seu pluralismo moral, mas correndo o risco de ceder ao relativismo que torna impossível a vida em comum com justiça; terceira, quando da receção do “Prémio Camões”, João Barrento afirmou, com razão, que ”a língua portuguesa está a ser bastante mal tratada no modo como é falada, na própria imprensa”, o que é indesmentível, basta ouvir rádio, ver televisão, ouvir o português falado e escrito por este país fora. Ora ler este volume da obra completa de Vitorino Nemésio ajudar-nos-á, por certo, a tratá-la melhor.
José Henrique Silveira de Brito