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Para uma política cultural nos Açores, XI / 2

Ainda Governo Regional e municípios

Se a cooperação entre Governo Regional e municípios representa um eficaz acelerador de desenvolvimento e inclusão cultural, como tentei demonstrar na primeira parte deste artigo, as autarquias têm competências específicas de especial importância, pois a percepção mais precisa das realidades de proximidade, diferenciadas de ilha para ilha ou até de terra para terra numa mesma ilha, afina o alcance da boa governança, que é a que vai do local ao geral, do pequeno ao grande sem nunca perder o valor estratégico dum olhar de longo prazo. Todavia, duas condições são indispensáveis à credibilidade desse poder político: autarcas altamente qualificados, a grande distância do tal cartão partidário que dum dia para o outro fez deles candidatos instantâneos à gestão de câmaras e freguesias; e serviços municipais empenhados em servir e cumprir sob quaisquer tutelas — afirmando um funcionalismo público garboso e dignificante, sacudindo velhos anátemas, aqui e ali justificados.
Governar bem não é fazer o que aparentemente facilita a renovação dos mandatos, como pão e circo para todos ou atender a insatisfeitos estridentes: consiste, antes, numa avaliação contínua do que deve e pode ser feito com os meios disponíveis — por exemplo apoiando com recursos plurianuais entidades com provas dadas e outras que, estando a começar, desenham já vantagens relevantes em contextos comunitários de proximidade: desde companhias de teatro a rádios locais, desde clubes navais com cursos de remo e vela em botes baleeiros (e secções museográficas) a cooperativas de artesanato e afins. E se importa sublinhar que só apoios plurianuais garantem estabilidade e permitem projectar a prazo, desta maneira também se evita perder tempo com avaliações repetidas, orçamento após orçamento, havendo claras evidências dum bem fazer e dum benefício comum. Em contrapartida, grandes festivais de música podem até ser o ex-líbris duma ilha com um único município, mas têm uma irrefutável vocação comercial que os garante, e Semanas do Emigrante com cartazes estapafúrdios — e gastos absurdos, mas ainda assim havendo compita entre autarquias!!… — não devem absorver recursos tais que deixam à míngua o que no restante calendário anual possa ser feito em favor das populações residentes e do património material e imaterial que lhe corresponde.
O apoio financeiro a bandas filarmónicas deve ser dado pelos municípios e por patrocinadores locais, e só por eles (e há sempre o possível apelo a diásporas em visita…), para que o Governo Regional, pelo seu lado, assegure bolsas a jovens instrumentistas que nelas se destaquem e queiram estudar num Conservatório dos Açores com instalações irrepreensivelmente modernas e um professorado de categoria. Do mesmo modo, o melhor artesanato deve ser valorizado regional, nacional e até internacionalmente, com certificações, transmissão intergeracional de técnicas e modelos, rede comercial estabelecida, propaganda, livros, um website e outras acções que vão muito para além da capacidade de realização e do fôlego financeiro da sua origem — e esta terá de ser uma boa tarefa do Governo Regional.
Depois, não há motivo para continuar a misturar «alta cultura» e «baixa cultura» em concursos de financiamento público. Nem os júris de uma garantem as melhores decisões para a outra (e vice-versa), nem a cultura dita popular deve ser desqualificada, como coisa menor que não é, como Vitorino Nemésio demonstrou sublimemente — há 74 anos! — com Festa Redonda. Décimas e cantigas de terreiro dedicadas ao povo da Ilha Terceira por […], natural da dita ilha. Mas alto lá: também a protecção e revivificação do cânone literário e artístico, e o estímulo da criação contemporânea — essa dupla essencial —, não podem correr o risco de ser secundarizados por escolhas institucionais com despudorada motivação eleitoralista e que pouco se importem se o preço por vitórias nas urnas for o de nivelar por baixo o que, já de si, está longe de ser alto…
O regime de mão estendida e subsidiodependência crónica será sempre de evitar: é um instrumento de controlo político (e será ainda maior, havendo proximidade máxima), além de uma afiada faca de dois gumes contra a qual todas as formas legítimas de financiamento alternativo devem ser ensaiadas, para que a liberdade e o sonho não sejam postos em perigo. Esta ideia pode chocar alguns (que estimo), mas realisticamente não vejo melhor forma de sustentabilidade regular, por ninguém ficar refém duma única fonte de patrocínios, que condições do momento podem suspender, colapsando projectos e compromissos. Um exemplo prático: alguém imagina relançar Almas Cativas de Roberto de Mesquita seguindo a edição da Ática, preparada com excelência por Pedro da Silveira em 1972. O poeta é de Santa Cruz das Flores e o literato das Lajes das Flores, porém os dois autarcas da ilha — por estranhos motivos — não se falam nem cooperam sequer em matérias de urgência e gravidade, donde ninguém esperará que o queiram fazer sobre tão ínfimo assunto. Não poderão os 5000 € necessários a essa reimpressão ser obtidos por subscrição promovida entre particulares de toda a ilha e até de fora dela? Claro que sim, e não custa tentar. Se meia dúzia de iniciativas deste tipo frutificarem nos Açores, e forem conhecidas em todo o arquipélago, não levariam a que mais caturras locais acreditassem ser possível reeditar, por exemplo, admiráveis porém esquecidos trabalhos históricos, etnográficos ou memorialísticos?
Cabe também dizer que os municípios não devem ser editores. Não é apenas o facto de não terem vocação ou capacidade de distribuição instalada, é sobretudo porque a boa vontade de uns e a pretensão de outros não bastam para cumprir as funções oficinais de edição e design de livros, mais o rigoroso domínio dos custos industriais que lhe estão associados. O tosco grafismo dos boletins municipais, que conhecemos, está nos antípodas da qualidade estética de publicações que já aproveitam e exibem a informada criatividade contemporânea existente nos Açores, e que importa valorizar — por exemplo, encomendando-lhe a renovação do design expositivo de museus municipais ou a modernização visual e tecnológica (com códigos QR) de roteiros culturais e históricos urbanos, ou paisagísticos.
Um impulso renovador contemporâneo que modernize a cultura dos Açores num período em que estão sob intensa curiosidade internacional pelas suas condições únicas para o turismo de natureza, devia ser o centro dum debate público implicando todos, em diferentes postos e escalões. E um debate que discuta também a admissão de candidatos independentes às eleições municipais, não só pelo esforço de qualificação dos seus que isso exigiria aos dois partidos dominantes e pela quebra do absentismo que uma tal lufada de ar fresco poderia produzir, mas também pela expectativa de uma grande renovação política, meio século decorrido sobre o início da Autonomia.

Vasco Rosa

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