Aviso prévio, para ajudar a desfazer um equívoco corrente:
Raul Brandão não integrava o grupo de continentais que em Maio e Junho de 1924 visitaram os Açores a convite de José Bruno Carreiro, director do jornal Correio dos Açores.
Num determinado momento do capítulo dedicado ao Pico, escreve Raul Brandão: «Quem quer, dorme às estrelas. Vamos… O que eu procuro, pela última vez na minha vida, não é o panorama – é a exaltação da vida livre.» (2023, p. 133).
É certo que as circunstâncias em que agora nos encontramos são outras, bem como o propósito que nos assiste. Mas o escritor não desgostaria deste acto público a céu aberto que celebra a sua viagem pelos Açores em 1924 e se detém particularmente no texto sobre as Sete Cidades que o autor nos deixou no seu livro As Ilhas Desconhecidas – divulgado ainda hoje uma obra capaz de suscitar a nossa atenção, a nossa comoção também, porque escrita com afecto e com o espírito de quem veio para conhecer os Açores e a sua gente, e conhecer em profundidade, «com demora e paciência» (palavras do escritor).
A viagem de Raul Brandão era a concretização de um projecto pessoal e antigo, surgido depois de o escritor ter lido o testamento de Mouzinho da Silveira, como confessou logo à sua chegada a Lisboa em entrevista ao Diário de Notícias (30.08.1924).
Quem abre o capítulo sobre o Corvo e lê o fragmento desse testamento compreende o desejo daquele político liberal de ser sepultado no Corvo e a importância do texto para o interesse e a curiosidade de Brandão quanto à pequena ilha açoriana e à sua comunidade – e da qual o escritor recolhera informações em outras fontes, pois em 1909, quinze anos antes da sua viagem, já ele escrevera um texto sobre o Corvo destinado a um livro escolar.
Este foco de interesse no Corvo explica o roteiro da viagem pelos Açores e permite contextualizar o capítulo micaelense.
Embarcado em Lisboa a 8 de Junho, no navio S. Miguel, e depois de ter descido à Madeira, Brandão fez, nos Açores, a habitual rota marítima, de leste para oeste: parou em Santa Maria, esteve em S. Miguel a 13 de Junho e a 17 desembarcou no Corvo, tendo parado nalgumas ilhas ao longo do percurso – isso transparece desde logo no título do primeiro capítulo «De Lisboa ao Corvo».
É no Corvo que efectivamente começa a experiência forte, dramática por vezes, de Brandão com o homem e o espaço açorianos. Depois de um mês no grupo ocidental, está de novo no Faial, que visita, bem como o Pico e S. Jorge (de 16 a 30 de Julho). Portanto, a estadia em S. Miguel ocorre já no final da viagem pelos Açores e num momento em que o escritor confessa que a sua sensibilidade se encontra já cansada (creio que o leitor não nota isso).
Vindo diretamente do Faial, ao contrário do que planeara, pois pretendia demorar-se na Terceira, para visitar também a Graciosa, Raul Brandão regista no seu livro a visita às Sete Cidades com a data de 1 de Agosto – razão que justifica a realização deste evento hoje e aqui.
O capítulo dedicado a S. Miguel tem como título «As Sete Cidades e as Furnas», e isso diz bem da centralidade dos dois pólos como destinos «obrigatórios» de um roteiro, mas representa ainda a perspectiva muito pessoal do escritor: «Mas há nesta ilha duas coisas maravilhosas: as Furnas e as Sete Cidades. Quase tenho medo de falar duma paisagem que hoje, mais do que nunca, me parece irreal.» (p. 181)
Na descrição da viagem às Sete Cidades importa realçar dois aspetos: o lado de aproximação e a reação do escritor perante a paisagem observada.
Ao contrário do que poderíamos esperar, o destino da viagem não é a Vista do Rei, mas as Cumeeiras (que Brandão regista no singular): «Sigo por Feteiras, Ribeira da Candelária, Lomba da Cruz, e meto a caminho da Cumeeira, ora entre grotilhões subindo a lomba do monte, ora pelas ribanceiras que enquadram as culturas lá do fundo, prolongadas até ao mar – terra dividida, rasgada, gretada de aluviões. (…)– Para cima, custa – diz o homem que me acompanha – para baixo, até a cabra manca faz viage…» (p. 181).
Anote-se, desde já, a minúcia da descrição e o registo de linguagem, na voz de um homem do povo, mais um dos que o autor conheceu e a cuja oralidade foi particularmente sensível.
O relato da viagem é feito de molde a proporcionar a visão repentina das Sete Cidades como uma aparição (quase mística, diríamos), o seu impacto transportando o «vidente» para um outro plano do real (ou fora do real): «Na minha frente entreabre-se um abismo que nos atira para fora da vida, para regiões inesperadas de sonho. A convulsão, a brutalidade e o fogo levantaram até ao céu grandes paredes vulcânicas.(…) As forças desencadeadas chegaram a este resultado: – um pouco de azul, um pouco de verde, ternura e idílio…» (pp. 181-182).
O sonho é aqui o espaço onde a imaginação pode «assistir» ao cataclismo vulcânico, tal como noutros casos o sonho permitia «fazer regressar» o escritor ao momento inicial em que as ilhas surgem do mar.
A última frase constitui ainda um bom exemplo da descrição em Raul Brandão: a combinação do objectivo com o subjectivo, daí resultando uma imagem impressiva e ambivalente onde a emoção se projecta no real observado e a paisagem passa a ser também aquilo que o observador sente em relação a ela; e cito de novo: «um pouco de azul, um pouco de verde, ternura e idílio…» (p.182).
Se há forma de descrever a força excessiva da paisagem e o seu efeito de «revelação» (ainda num sentido místico) sobre o escritor, ela encontra-se na afirmação, também excessiva: «Um ah de assombro, um sentimento novo, um vago sentimento de surpresa… Pela primeira vez na minha vida não sei descrever o que vejo e sinto.» (p.182).
Esta confessa incapacidade do escritor, resolve-a ele pelo recurso à imaginação/ao sonho (que procura encontrar fora do real concreto imagens que ajudem a «explicar» a natureza e o sentido da paisagem) e, por outro lado, pelo recurso à «pintura»: o olhar selecciona as cores, a luz, as texturas, os acidentes do terreno, que surgem progressivamente no quadro que Brandão vai compondo (lançando mão das palavras, no final de contas) – um quadro dinâmico e movediço em que as tonalidades e as inflexões da luz se transfiguram e substituem, no propósito de «fixar o encanto» (p.183) e de que resulta uma representação incomparável das Sete Cidades.
As razões que determinaram o «desvio» de Raul Brandão para as Cumeeiras, podemos, afinal, encontrá-las no jornal O Povo, de Angra do Heroísmo, na sua edição de 30.08.1924. Cito: «Pela primeira autoridade do distrito [isto é, o governador civil] foi-lhe oferecido um passeio à vista dos Mosteiros (extremo oeste da ilha) e um almoço nas cumeeiras das Sete Cidades, a que assistiu, além do grande prosador e da sua ex.ma esposa, a nossa prezada colega D. Maria Evelina de Sousa. Por informação fidedigna, sabemos que poucas pessoas terão admirado com mais intensa comoção o esplêndido panorama do vale das Sete Cidades, tendo Raul Brandão, ao ser chamado para o almoço, proferido a seguinte frase: “Comer em frente de tão irreal espectáculo é uma verdadeira profanação”.» (apud Rosa, 2019, p.85).
Para um escritor que confessou não poder «ver uma árvore sem espanto», as Sete Cidades forneceram-lhe motivos de sobra para espantar-se e comover-se e disso nos dar conta literariamente: a sua visão da paisagem, simultaneamente objetiva e íntima, real e irreal, e envolta numa atmosfera de religioso, fica como mais uma confirmação particular daquilo que Pedro da Silveira escreveu sobre o livro de Raul Brandão em geral: «As Ilhas Desconhecidas são o melhor livro que até agora um forasteiro escreveu sobre os Açores. Os outros terão olhos; este, tem olhos e alma.» (Brandão, 2023, p. 21).
Celebrar o escritor no centenário da sua viagem há-de passar pela divulgação desse acontecimento e da sua história particular, com peripécias e percalços próprios do tempo; mas terá de passar sobretudo pela divulgação (e interpretação) do texto que o escritor nos deixou.
A celebração que aqui nos trouxe e se prolongará através da exposição é já um bom exemplo de tudo isso. Parabéns, pois, às entidades, instituições (Câmara Municipal de Ponta Delgada, Junta de Freguesia das Sete Cidades, Associação de Fotógrafos Amadores dos Açores) e respectivos técnicos, que a projectaram e concretizaram.
BRANDÃO, Raul (2023), As Ilhas Desconhecidas. Prefácio de Pedro da Silveira, apresentação de Vasco Medeiros Rosa. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas.
ROSA, Vasco Medeiros (2019), Raul Brandão e os Açores. Prefácio de Urbano Bettencourt. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas.
Urbano Bettencourt