Na nossa história o mar sempre foi importante, mas com uma dose de cuidado: por todas as ilhas é verificável que durante séculos as populações viviam de costas para o mar porque dali vinham os opressores e as tempestades.
A regra normativa do Estatuto Político dos Açores na sua versão de 2019 sobre a gestão partilhada do mar insular criou uma enorme confusão. Estando situados no meio do atlântico parecer-nos-ia correto prestar atenção à ilusão da riqueza ilusoriamente fácil: a exploração do mar profundo tem consequências diretas no modo de vida das populações. Se já vivemos em constantes sobressaltos pelos sismos de origem tectónica e vulcânica; se já vivemos no triângulo da junção das placas tectónicas europeia, americana e africana, no designado Rift-Terceira; se já vivemos numa insularidade penosa pela mediocridade dos governos que teimam em não melhorar, em tempo real, as nossas vidas – porque, afinal, continuamos tendo as mesmíssimas dificuldades de acessibilidade que tínhamos com a mera autonomia administrativa de 1832 a 1974, com pouco acesso à saúde, à literatura, e à cultura (que não sejam as tradições) – não se entende o frenesim sobre o assunto.
A gestão partilhada, isto é, a gestão partilhada de poderes entre o Estado e a Região Autónoma, aconteceu desde o início desta com a instauração da autonomia política. Até antes, nos anos de 1975-76, através da Junta Regional que era dependente diretamente do Primeiro-Ministro e para preparar a transição; e logo depois no Estatuto Provisório de 1976, e o definitivo nas suas diversas versões, toda a panóplia de assuntos que, mantendo-se na dimensão geral do Estado, seriam desenvolvidos pela Região, nas áreas da saúde, educação e outros assuntos igualmente relevantes. E depois, nas questões do mar também, vários assuntos com legislação regional, nomeadamente a extração de areia, nas pescas, na classificação de zonas de pesca e de defeso. Ou seja, a Região, afinal exerce uma função permanente num registo de gestão partilhada. Por exemplo, na saúde: temos os serviços e as valências que gerimos, mas sustentados em comandos nacionais, como os medicamentos. Na educação, de igual sorte: gerimos imensos pontos, mas baseados nas bases gerais nacionais da matéria. E no mar também.
Na nossa história o mar sempre foi importante, mas com uma dose de cuidado: por todas as ilhas é verificável que durante séculos as populações viviam de costas para o mar porque dali vinham os opressores e as tempestades. Na época dos descobrimentos as cidades tinham portas que se fechavam à noite contra o mar; as moradias corriam na direção da terra e das estradas, mas não em frente ao mar. Quer-se dizer: embora o mar tenha um papel central na vida das populações insulares desde o povoamento, a sua relação nunca fácil, nem de apreciação geral. Só nos tempos modernos, com as tecnologias, as ilhas viram-se para o mar. Para o ilhéu o mar quase sempre foi agente de perigo: das funduras do oceano revolto pouco se retirava para além do medo. Mas hoje é muito diferente, e Raul Brandão teve um papel central com “As Ilhas Desconhecidas”; mas deveu-se sobretudo à autonomia política.
Ou seja, temos aqui elementos que nos confundem: por que motivo os Açores, desde há cerca de duas décadas, mas especialmente agora com os novos dados do mar profundo, transbordam de ideais de poder? Enquanto andamos a braços com dificuldades de acessibilidade generalizada (exemplo: para ir da Terceira até S. Jorge, temos de dar a volta ao arquipélago), a Região lançou-se num novo projeto: já não interessa a revisão da Constituição; agora (são as relações internacionais, a sua história, na Base das Lajes e) é a gestão partilhada do mar profundo. Coisa estranha. Na verdade, com exceção de Marquês de Pombal que criou em 1766 um sistema regional com sede na cidade autonómica e mundial de Angra do Heroísmo, a Capitania Geral dos Açores; com exceção quando foram as ilhas únicas guardiões do território soberano nas décadas de 1580 e 1820, todos os governos usaram e abusaram das ilhas, incluindo a obrigação do distrito da Horta ter de adotar, à força de lei, a autonomia administrativa através do Código Administrativo das Ilhas Adjacentes da década de 1940. Seria de esperar que os governos da autonomia política usassem esse saber e se precavessem, usando o regime autonómico para nos proteger, em vez de o enganchar em esquemas pouco rendíveis e sobretudo pouco transparentes. O Governo Regional colou-se a essa empreitada e agora ficou preso como o parasita. Isso é preocupante. Mas nasceu, ao mesmo tempo, outra onda de moda que o Governo também se está a amarrar: os especialistas, do exterior, oriundos da Patagónia, vêm às maravilhosas e afortunadas ilhas, intitulam-se especialistas de paisagens dum universo que nem conhecem; mas conhecem a Constituição e isso é suficiente para a Região. A troco dessa avalanche de solidariedade com componente financeira ou prestigiosa até se aponta o centralismo do Tribunal Constitucional nas questões do mar açoriano, apontando como solução que este órgão de soberania tenha dois juízes escolhidos das regiões autónomas. A nossa muita antiga ideia de dois juízes regionais tinha a finalidade de prover a instituição com elementos com capacidade técnica para influenciar as deliberações do Tribunal Constitucional através do diálogo e da evolução da doutrina jurisconstitucional; mas estes novos técnicos dum universo interesseiro apresentam-na como solução técnica de se impor uma maior acessibilidade à execução da gestão partilhada. Até o Representante da República que durante muitos anos aprovou todas as leis regionais de origem autonómica e poucas ou nenhumas questões de constitucionalidade e legalidade questionou, está atraído pelo valor do mar profundo e defende que o Estado colabore mais com a Região nesse sentido. Não foi o Representante da República que assinou as leis regionais autonómicas totalmente contra a Constituição e o próprio Estatuto dos Açores?; mesmo quando os parlamentares afirmavam que se tratava de fazer experiências legais?; experiências legislativas contra a Constituição?, contra as populações insulares? É muito doloroso engolir tamanha patranha.
Um governo mal preparado é um enorme perigo para a democracia e a autonomia. Mas, e se for propositado? Será que é o Estado que, sendo centralista para todos os governos regionais, manda esta gente da Patagónia para nos ensinar a usufruir das nossas belezas naturais? A Universidade dos Açores nem sequer é auscultada. Não há aqui algo idêntico ao que o Estado nos fez durante séculos?, mas agora através de outros esquemas?, e com o aval do Governo Regional?
Arnaldo Ourique