Arnaldo Ourique, especialista em Direito Constitucional, colaborador regular da imprensa regional, nomeadamente no Diário dos Açores, está preocupado com a qualidade da governação nos Açores e com o percurso da Autonomia Regional. Nesta entrevista manifesta algumas destas preocupações, com exemplos, e aponta alguns caminhos que deviam ser tomados.
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Que balanço faz sobre a autonomia da atualidade?
Do ponto de vista governativo: deveras negativo. Do ponto de vista da autonomia política: seriamente negativo.
Do primeiro ponto: este Governo Regional não consegue imprimir um sentimento de confiança; pelo contrário, aumenta a infelicidade.
No seu primeiro mandato de cerca de dois anos foi muito mau porque deu guarida a todos os amigos e amigalhaços dos partidos envolvidos, em vez de pautar-se pela qualidade. Morreu de incompetente.
Neste seu segundo mandato, que sinto claramente o povo estar sedento da sua queda mais à frente, mantém idêntico registo.
Nas justificações das nomeações já não se dão ao trabalho de as justificar; pode ser um ferreiro, mas nos gabinetes secretariais o que importa não é a capacidade funcional, mas a manutenção da diarreia política.
Quando numa apresentação do projecto do cabo da Google se afirma que “conseguimos manter o segredo”, isso é uma falha tectónica: no discurso inexperiente ou falso, sai a verdade de que alguma coisa se passou. E sobre isso, quando a Câmara do Comércio de Angra do Heroísmo, logo a seguir, vem dar informações e suspeitas sobre eventuais contratos, sejam eles regionais ou estaduais, ficamos a saber que existe algo de estranho e que um dia vamos perceber.
Nas línguas de mal dizer, um micaelense dirá (como, aliás, o disse efectivamente na comunicação social) que a ilha Terceira não deve ter amarração porque é uma ilha sísmica (como se não fosse todo o arquipélago e o planeta), e dirá um terceirense (que o disse, mas nesse caso em privado) que por este prisma não deveria fazer-se nenhuma amarração em S. Miguel porque esta ilha está a afundar-se lentamente (na ordem dos milímetros).
Do segundo ponto, mais perigoso porque mais duradouro, parece-nos que estamos a chegar ao fim da autonomia política: falta-nos um sistema político realmente eficaz, falta-nos políticos com dimensão intelectual, falta-nos um povo mais literato.
Qual, no seu entender, é o Governo necessário?
Se um Governo não quer apenas governar, mas também quer usufruir ilegitimamente, naturalmente que não transmite nenhum veio de esperança.
É um Governo fraco, porque incompetente e maldoso.
Se um Governo é incompetente e teima manter o idêntico registo baseado na ideia de que tem legitimidade porque foi escolhido pelo povo, não transmite esperança às populações.
É um Governo fraco, porque tonto e com um grau de estupidez política em excesso.
Se na Região existissem instituições interessadas na melhoria da democracia açoriana e produzissem estudos de opinião – provavelmente a oposição perceberia, por possuir essa informação mínima, de que em democracia é normal fazer cair o Governo.
Não é um Governo um grupo de amigos, “tubarões” partidários infelizes e sedentos de maiores rendimentos pessoais através da política; um Governo é um conjunto de pessoas, com certo nível de literacia política e social que tem um mínimo de interesse em ajudar a evolução das condições de vida das pessoas.
Governar para um centro social em preterição dos outros centros sociais é aumentar o nível do fumeiro para a destruição da autonomia política.
O maior valor do político é responder continuamente às populações de que efectivamente vale a pena viver da autonomia política; se esta vive para servir a maioria populacional em preterição absoluta da constitucionalidade da política portuguesa – que é a solidariedade entre todos e para todos – é justo perguntar por que motivo teimamos em trilhar a mesma tecla?; por que não devemos experimentar outros veios de cimento político? Distribuir dinheiro não é um acto político, mas tão-só um acto administrativo. Onde está, portanto, a política governativa? Dou uma nota muito negativa a este e ao anterior Governo.
E que será necessário para mudar, na sua opinião, este registo?
Se o arco governativo dos Açores, que são os dois partidos com muito maior número de eleitores, o PS-A e o PSD-A, não se entenderem na busca da solução – é bem provável que a autonomia política chegue a um ponto onde seja necessário fazer um referendo ao seu modelo ou até à sua manutenção no actual registo.
A solução, no meu entender, é simples e é difícil: é simples, porque, efectiva e tecnicamente, é fácil alterar o sistema de Governo Regional na Constituição sem colocar em causa o actual o sistema autonómico das regiões autónomas, melhor dizendo, sem colocar em causa a natureza do Estado constitucional hodierno.
E é difícil, porque os políticos da Região não têm interesse e competências intelectuais para sequer perceber o problema.
Em 1976 teve sentido o modelo de sistema de Governo Regional por via da novidade constitucional das autonomias; e até à década actual também, com boa vontade, podemos concluir que é compreensível esse modelo porque a Região Autónoma tem muitos problemas internos para resolver provocados pela falta de governação a sério.
Mas é absolutamente impensável mantermos esse modelo que é, aliás, inconstitucional.
Não tem sentido, e é muitíssimo ofensivo da nossa inteligência, que a Constituição ainda não garanta um sistema de Governo Regional verdadeiramente democrático.
É obtuso que tenhamos capacidade para legislar em milhentas matérias e com leis de igual força para os insulares que as leis do Estado; que tenhamos um Governo Regional com idênticas prerrogativas de governação das populações insulares que os governos nacionais têm para o todo nacional; e não tenhamos um sistema de governo regional idêntico ao nacional em matéria de fiscalização política governativa. Não existe fiscalização governativa nos Açores. Isso é a base de tudo na autonomia.
Os ignorantes, os aparentes interessados e interesseiros continuam a vegetar na política regional – porque não existe um sistema de Governo Regional democrático.
Como podemos mostrar a esses políticos essa necessidade? Será possível tamanha obra sendo as pessoas, na generalidade, desinteressadas da política?
Se não conseguirmos a bem, com certeza algum dia conseguiremos a mal.
A história política dos Açores – que não começou na década de 1890 (acontecimentos muito significativos), nem na década de 1820 (acontecimentos ainda mais e muito mais significativos), mas muito antes – tem muitos exemplos, dos quais distinguimos alguns e em síntese: o Faial não quis a autonomia administrativa distrital de 1895 porque tinha a experiência desde 1832 e não gostou do centralismo interno (só teve de o aceitar à força pela ditadura através do Código Administrativo das Ilhas Adjacentes da década de 1940); a ilha das Flores em 1919 quis-se vender aos EUA por não gostar do centralismo interno; S. Miguel, em 1581 por carta, entregou-se à monarquia estrangeira por não gostar do centralismo interno e em 1582 a Terceira, em prol do arquipélago, manteve-se firme à cidadania portuguesa perante aquele estrangeiro.
Centralismo interno, bem entendido, provocado pelo Estado Novo cuja ditadura era má para os portugueses e, pior ainda, para quem vivia em ilhas distantes do mundo; o único centralismo interno, de origem regional, aconteceu depois de 1976, depois dos insulares adquirirem a sua autonomia constitucional: sobretudo com a destruição, em 1998, de um dos maiores princípios da autonomia açoriana, os três históricos centros urbanos, deixamos de os ter e passamos a ter apenas um centro – é esta, aliás, a maior revolução política negativa de toda a história política dos Açores porque foram os insulares que em vez de se governarem em blocos reunidos no regional, afunilaram interesseiramente num único bloco em total prejuízo do futuro dos próprios usurpadores.
Quando os açorianos descobrirem nos seus corações essa revolução destrutiva de um único bloco, com o paradigma de esse bloco sustentar a Região e essa Região sustentar esse bloco, estarão prontos para fazer a diferença e a mudança.
A democracia, melhor dizendo, a dignidade da pessoa humana, exige que se altere o que nasceu torto e que se contorce continuamente até que caia por desagregação.
Vale a pena agir inteligentemente, antes um acordo imperfeito do que uma má ação: não está provado que o atual modelo de autonomia política é o melhor modelo; está provado que existe há quase meio século, mas não está provado que ele durará outro tanto.