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As profunduras do mar açoriano 2/2

Num 1.º texto vimos este assunto do ponto de vista da atuação do Governo Regional. Talvez não tenhamos dado atenção ao que se queria dizer: existe efetivamente grande ilusão sobre o mar açoriano e vimos isso, mas vamos dar um exemplo mais concreto.
Vimos que sobre o mar surgiram imensos constitucionalistas empenhados em defender a Região; também vimos que o Representante da República de igual modo se empenhou nesse desiderato. E, entre outros casos, agora acabamos de verificar a imaginação de um almirante, que afirma «…onde as incomparáveis circunstâncias propiciadoras da economia e da investigação científica e inovação tecnológica terão superior potencial para fomentar a prosperidade regional»; e «… quando a ciência e a tecnologia criarem condições adequadas, a utilização dos recursos naturais não renováveis poderá assumir uma crescente importância na prosperidade da Região»; e os «… os Açores, com base nos artigos 84.º da Constituição da República e 8.º do respetivo Estatuto Político-Administrativo, reivindicarem o reforço dos seus poderes de gestão partilhada sobre as zonas marítimas adjacentes, nomeadamente os relativos à exploração e aproveitamento sustentáveis, bem como à conservação dos recursos naturais…»; sendo que «Esta evolução das atribuições dos Açores justifica-se pela necessidade de atender às suas especificidades insulares, ultraperiféricas e marítimas…» e «…promoverá uma melhor salvaguarda das preocupações e dos interesses dos Açores…», sublinhados nossos. Enorme atenção aos Açores e aos dividendos do mar; e por que motivo não se sinaliza o caso da Madeira que é igualmente significativo porque mexe sobremaneira com a soberania de Espanha? O aumento do espaço marítimo não tem que ver apenas com os Açores, também tem com a Madeira e o país e a União Europeia; por isso, afunilar o assunto apenas aos Açores é ver pouco ou não querer ver nada, como se os açorianos do Governo Regional fossem os únicos naquilo que é de muitos; e pior, é dar ao Açor maior responsabilidade, culpando-o numa matéria que vale mais do que a própria autonomia política. A verdade dói; esconder a dor nunca vai fazer desaparecer a verdade.
Não estamos a afirmar que exista uma certa combinação de encantar o povo insular numa cantiga de embalar: a cantiga existe; a intenção não será má. Estamos apenas a dizer que em tudo há uma ilusão.
Desde 1976, isto é, desde que existe a Região Autónoma, está consagrado o princípio da sua participação nas negociações internacionais, bem como nos benefícios deles decorrentes. Até hoje nunca houve por parte da Região qualquer tentativa de endereçar ao Estado conversações nesta área de modo a consagrar pontos de convergência respeitáveis e transparentes, estáveis e duradouros; nem nenhuma iniciativa regional de feitura de um regime legal ou contratual ou de cooperação de desenvolvimento destes princípios, tal como existe nomeadamente para as finanças regionais ou para as eleições regionais. Do ponto de vista financeiro, nas duas primeiras dezenas de anos o financiamento do acordo existente com os EUA a propósito da Base das Lajes foi canalizado para o continente para construção de imóveis sociais; nas últimas duas dezenas foi canalizado para os Açores, concretamente para S. Miguel em áreas da cultura. E do que não se sabe o tamanho será imensamente maior.
E quanto ao mar? Até 2009 a Região, embora tenha vasta legislação regional em vários assuntos, e nesse ponto tem um mérito enormíssimo, sobretudo a partir da década de 2000, nunca formulou projetos de longo alcance, preferindo governar-se a si próprio num estilo de divórcio que já plasmamos no princípio segundo o qual “quanto mais longe a Região estiver do Estado, mais perto está da periferia”. A partir desse ano a política regional neste âmbito foi um desastre: criação de guerras políticas com o Estado com criação de legislação inteiramente contrária à Constituição e ao Estatuto Político, em vez de permanente diálogo; até se foi ao ponto de criar legislação a título experimental e dando orientações vinculativas à própria administração pública direta do Estado. Uma diarreia institucional de grande irresponsabilidade; razão para o Estado, nesse circuito de conflito político, foi fazendo os seus diplomas à revelia das regiões autónomas.
Ou seja, em matéria de dividendos pelos acordos internacionais – a Região Autónoma nunca fez nada. Então pergunta-se: por que motivo iria agora fazer alguma coisa de jeito quanto ao mar dos Açores? A ilha Terceira nunca recebeu nenhum dividendo pelas consequências muito negativas para a sua economia, a exemplo: apesar do aeroporto ter dimensões de grande amplitude, a sua natureza militar, com duas bases militares, uma portuguesa e outra americana, sempre impediu o seu melhor aproveitamento económico. Aliás, a Terceira já foi porta de entrada nos Açores e desde há duas décadas que deixou de o ser. Ou o caso da contaminação que continua em lentidão de lesma; e o próprio projeto específico para a ilha, o Plano de Revitalização Económica da Ilha Terceira, de 2015, que prometia mundos-e-fundos, nada se viu e que aliás coincide com o início, até hoje, de uma forte diminuição da população. Não existe dinheiro para consertar um troço de menos de cem metros na única estrada regional na Terceira; mas existe 45 milhões para acrescentar um troço nas várias estradas regionais de S. Miguel.
Enfim. As profunduras do mar açoriano é uma ilusão e entranhada.
Quem não faz em cinquenta anos, não o vai fazer em uma década e muito menos com governos regionais de pessoas de bem, mas com uma gigantíssima maioria de políticos fracos e medíocres, e com uma direção administrativa fraca e medíocre, falsa e infratora, e com uma administração paupérrima.
Vai tudo continuar como era e é: vamo-nos continuar a arrastar na incompetência do que fizemos para a autonomia solidária, que foi nada; na incompetência do que fizemos para o desenvolvimento harmónico, que foi nada; na incompetência do que fizemos para os dividendos da geopolítica, que não foi nada. Nada, bem entendido, para a autonomia política de desenvolvimento da condição humana insular, excetuando para a diáspora açoriana que, essa, vive feliz em viagens dos políticos de profundíssima utilidade com o parco dinheiro dos insulares.
O Estado está a fazer-nos passar por parvos; a Região Autónoma está em perfeito alinhamento nessa missão. Ou melhor: a Região Autónoma está a enganar-nos, porque é ignorante maldosamente e pensando orgulhosamente que os insulares são todos tontos e tolos. De modo mais incisivo: a Região Autónoma está a violar-nos em benefício duma elite religiosa e empresarial interesseira, fazendo dos políticos mero jogo de medalhas e fetiches políticos e interesses metálicos; e ao Estado isso interessa para se manter divorciado dos problemas dos insulares.
Estamos tramados. A autonomia política em vez de nos oferecer rasgos de felicidade atola-nos em fingimentos politiqueiros. Os governos das ilhas têm de ler o 1.º artigo da Constituição, «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária», e fazer a transição para os Açores: o arquipélago dos Açores é uma região autónoma da República Portuguesa, alicerçada na dignidade da pessoa humana, na vontade popular das suas populações e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e baseada na Constituição e no seu Estatuto Político. Os governos das ilhas têm de ler o artigo 9.º da Constituição, «é tarefa fundamental do Estado o desenvolvimento harmonioso de todo o território», e forçosamente aplicá-lo nos Açores, com honestidade intelectual, com sabedoria e com sentido autonómico de Estado. Com menos do que isso, os insulares um dia acordarão e mudarão os tempos e as vontades. Isso só será evitado com um sistema de governo regional que respeite a Constituição e os insulares, porque sem controlo governativo não existe democracia; e com ele, finalmente, construir um imaginário competente e lúcido.

Arnaldo Ourique

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