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“Les petits riens”

Os “petits riens” que dão nome a esta crónica eram uns canapés e outros aperitivos segundo a designação duma prima minha em linguagem de impressiona tolos (pour épater le bourgeois, para inglês ver…). Mas por vezes podem ser como a pedra no sapato que pode ser muito pequena mas importuna muito.
Assim é de facto com muita coisa que nos rodeia. Lembro que a minha mulher se preocupava em demasia com “petits riens” sem importância alguma mas que, para ela, assumiam estatuto de crime de lesa-majestade se não fossem resolvidos prontamente. Podia ser a simples mudança de uma imagem, um passepartout, uma planta decorativa, ela a tudo obstava optando pelo estatismo… deve-se estar revirando agora comigo a mudar molduras, imagens de fotos nas paredes, plantas, renovando visualmente o entorno do escritório e outros cantos da casa, fazendo sobressair mais umas fotos dela ou nossas ou outras… mas o petit rien que me trouxe aqui é mais irritante.
Sempre achei que ela se incomodava com futilidades, coisas irrelevantes ou de pequena monta, que só serviam para acelerar as batidas cardíacas sem nenhuma outra vantagem ou desvantagem…e optei por cuidar de coisas mais importantes e menosprezar a relevância das restantes.
Vivo aqui vai para 20 anos e, repetidas vezes, tenho vociferado, escrito e criticado tamanho desmesurado dos tratores que mal cabem nas ruas e seriam mais apropriados à dimensão da minha Austrália, à meseta espanhola ou aos grandes espaços das planícies cerealíferas dos EUA, com a apanha do milho (maio-junho e setº – outº) forçando os pacatos habitantes sem tratores a retirarem os seus carros do estacionamento para os senhores monstros passarem….
Ora nestes anos todos tive (até 2023) um Audi A4, largo e comprido mas sem jamais encolher o espelho retrovisor do lado do condutor, e nunca mal aconteceu, mesmo que os rodados do trator passassem a milímetros do mesmo. Ora agora temos um condutor de 3ª idade num desses tratores e que já causou alguns danos em viaturas estacionadas, por erros de paralaxe, de má visão ou inadequada preparação para a condução dos monstros….e eu tenho um pequeno Smart Forfour que deixa imenso espaço dentro das linhas amarelas que delimitam o meu estacionamento reservado….
Pois ontem ao ouvir os monstros fui à janela inteirar-me de que o idoso condutor passava sem me danificar a viatura… tarde demais, o espelho já era… e estava dependurado como um frango a quem cortaram o pescoço antes de ir para a panela… e os tratores já iam longe sem marca que identificasse ao autor dos danos causados.
Fui ao carro ver e não consegui recolocá-lo a funcionar… era isto, um Petit rien, normalmente sem capacidade me incomodar com o acontecido, não fora o caso de eu não ter causado nenhum acidente, nem estar envolvido em nenhum desde 1969, um anos depois de tirar a carta e de ter tido alguns acidentes nesses primeiros 365 dias… Não fora o caso de, como é hábito aqui, as pessoas batem e piram-se, seguindo o adágio norte-americano de “hit and run” e isto irrita-me profundamente pela irresponsabilidade e falta de respeito pela sociedade.
Admito que esta pequena pedra no sapato interferiu com o meu sono, normalmente tranquilo, e de manhã cedo vesti-me para ir à estação de serviço a ver dum curandeiro para o meu retrovisor. O jovem ainda não tinha chegado e dirigi-me a outra oficina, fechada, mas ao lado na pintura de automóveis estava gente, surpresa minha, uma jovem mulher a pintar um carro, estive tentado a dar-lhe os parabéns por ter vencido mais um estereótipo mas ela foi lesta a chamar o patrão, que prontamente me atendeu e corrigiu o problema, sem me cobrar nada… Ganhei o dia e recuperei a fé na raça humana!
Vim para casa, satisfeito mas inquieto por ter deixado que um problema tão pequeno me apoquentasse. Seria da idade? Interroguei-me, da intolerância da velhice? Do medo de me quebrarem as rotinas e obrigarem a sair do meu espaço protegido (Safety Net diríamos nós, lá na Austrália)? A paciência de chinês que sempre me caraterizou, por vezes desaparece para parte incerta, sem se saber bem como, quando ou porquê… seria da velhice?
Bem, preparemo-nos para o próximo petit rien… lembrando-nos desta advertência “daqui a dias entras na quarta idade”, tu que sempre sonhaste não passar dos 50 quando ouvias a celebrada música When I’m 64 dos Beatles, imaginando que nunca a viverias, tal como a maioria dos varões da tua família…. e afinal aqui estás com 50% mais de anos de vida do que jamais esperarias e isso não é nenhum “petit rien” que se menospreze.

Chrys Chrystello*

*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713
MEEA-AJA (IFJ)

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