A Universidade dos Açores prestou a devida homenagem ao seu Fundador e Primeiro Reitor, Professor Doutor José Enes, na semana passada, num colóquio organizado, entre diversas outras entidades, pelo Centro de Estudos Humanísticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, cuja Directora é a Professora Doutora Maria do Céu Fraga. Infelizmente, não pude comparecer, por motivo de doença, o que muito lamento, e por isso me apresso a unir-me a tal homenagem, evocando por meu turno uma personagem com papel fundamental e mesmo decisivo na construção do presente e do futuro dos Açores.
Familiarizado com a reflexão filosófica nos domínios da Metafísica, nos mais elevados graus de abstracção, José Enes era simultâneamente um cidadão fortemente empenhado e mesmo um homem de acção.
As inolvidáveis Semanas de Estudo da década de sessenta do século passado aí estão para o comprovar. Mas a sua grande realização é, sem dúvida, a Universidade dos Açores, da qual foi o principal impulsionador, como Presidente da Comissão Instaladora do Instituto Universitário, que a precedeu por curto período, e o seu primeiro Reitor. Justo é lembrar também alguns nomes de pessoas que o acompanharam em tais tarefas, nomeadamente o Professor Doutor Gustavo de Fraga, que abandonou a sua cátedra na Universidade de Coimbra para vir lançar as bases dos estudos de Humanidades, sem os quais não há verdadeiro valor universitário em qualquer instituição de ensino superior; e o então jovem investigador Vasco Garcia, que veio mais tarde a ser também, por dois mandatos bem preenchidos, Reitor da nossa Universidade.
Mesmo depois de cessar funções como Reitor, José Enes manteve responsabilidades de direcção em diversos organismos universitários, neles dinamizando tarefas de importante significado para a implantação e prestígio da Universidade como instituição fundamental na afirmação da identidade açoriana.
O seu profundo conhecimento da História dos Açores e o muito que sobre ela foi meditando ao longo dos anos davam-lhe uma visão de grande sabedoria sobre as nossas realidades e o seu dever. Era por isso consultado e ouvido atentamente quando surgiam dúvidas ou novos problemas na construção e consolidação do presente e futuro dos Açores. E isso era também um forma de intervenção cívica de inegável eficácia.
Em 1984 convidei-o para proferir uma conferência, promovida pelo PSD/Açores, na comemoração do décimo aniversário da Revolução do 25 de Abril. O texto foi incluído no volume “Açorianidade e Autonomia”, editado por altura da Presidência Aberta de Mário Soares nos Açores, em 1989 e consta também do livro “Portugal Atlântico”, contendo textos dispersos de José Enes.
O discurso de José Enes causou profunda impressão na generalidade das pessoas que o foram ouvir no claustro do velho Convento da Graça, convertido em auditório.
Retive logo da exposição feita a importante referência à recusa do Poder Central em autorizar a construção de um porto na ilha do Faial, proposta pelo Governo Americano logo pouco depois da independência das antigas colónias inglesas da América, mas sem que daí se seguisse qualquer iniciativa para proceder a tal melhoramento por iniciativa portuguesa. Aliás, foi preciso insistir muito, em permanentes súplicas dirigidas a Lisboa, até que fosse finalmente autorizado o lançamento de derramas, sobre os impostos pagos nas nossas ilhas e recebidos integralmente pela Coroa, para financiar tais empreendimentos portuários na Horta e em Ponta Delgada, quase um século depois. Nesta última fase foi importante o papel de José do Canto e de outros cidadãos açorianos para se chegar ao termo de tal pretensão, que afinal punha aos ombros da nossa gente o pagamento dos portos, com benefício para todo o País. Felizmente hoje estamos a trabalhar em termos diferentes, graças à nossa Autonomia Constitucional!
Com verdadeira intuição profética, falava José Enes no citado texto, de incompreensões e dificuldades do processo autonómico por parte do Poder Central. Por sinal, superadas tensões iniciais, atravessávamos então um período de acalmia nas relações entre os Açores e Lisboa. Mas não tardou muito que se desencadeasse uma verdadeira campanha de pretensa reconquista de poderes do Estado, tidos como usurpados pelas nossas novas instituições de governo próprio democrático, numa interpretação demasiado arrojada, no sentir dos mandantes de tal campanha e seus agentes no terreno insular, dos preceitos da Constituição.
A firmeza com que daqui se respondeu a essas movimentações assentou na convicção, também verbalizada por José Enes no mesmo texto, da verdade e do valor jurídico de Direito Natural das históricas aspirações autonomistas açorianas, invocadas em preceito constitucional. Nem podíamos deixar cair prerrogativas que afinal exprimem, em palavras do mesmo, “o fascínio da surpreendente realização de um ideal com tamanha plenitude que ultrapassa todas as expectativas das gerações que ardentemente o sonharam”.
Sem nunca ter assumido cargos na orgânica autonómica, José Enes tem inegavelmente lugar, por direito próprio, na galeria de honra dos Patriarcas da Autonomia dos Açores.
João Bosco Mota Amaral*
*(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico)