“Mas quanto à primeira fase do meu relacionamento com António Borges Coutinho, isso sim, tenho muitas coisas para recordar e valorizar devidamente, pelo muito que significaram na minha vida e na minha formação política.”
As minhas relações com António Borges Coutinho tiveram duas fases distintas. A segunda foi de afastamento e até de confrontação, como adversários políticos a sério. Iniciou-se com a minha candidatura, como Independente na lista da União Nacional, pelo Distrito Autónomo de Ponta Delgada, no tempo da chamada “Primavera Marcelista”, facto que parece o desapontou fortemente, o que mais tarde vim a compreender, tal era o desfavor em que ele próprio concorria, como candidato da CDE; e agravou-se depois da Revolução do 25 de Abril. Nomeado Governador do Distrito, sendo eu o Presidente da Comissão Política Distrital do PPD, logo nos defrontamos a propósito do tema da Autonomia, que ele, liderando o chamado “Grupo dos Onze”, queria manter no plano meramente administrativo, democratizando o funcionamento das Juntas Gerais; e de vários outros. Julgo ter sido eu a cunhar os termos “Borgescoutismo” e “Período Borgescoutista” para designar o seu mandato, alinhado com o “Gonçalvismo” então dominante em Portugal ao qual foi posto termo definitivo em 6 de Junho de 1975, mas que já tinha começado a definhar entre nós com os resultados das primeiras eleições realmente livres e democráticas da História de Portugal, realizadas em 25 de Abril desse mesmo ano e nas quais o PPD elegeu 5 Deputados à Assembleia Constituinte, o PS 1 e os outros vários partidos concorrentes nenhum. Se não inventei tal termo, tê-lo-ei usado abundantemente, em intervenções em comícios e em outras oportunidades. Fui retribuído por António Borges Coutinho na mesma moeda, no discurso proferido num encontro organizado pelo PS ou pelo “Fórum Açoriano”, após a minha saída das funções governativas regionais, ao afirmar que finalmente chegava aos Açores o 25 de Abril! Ainda o felicitei quando foi condecorado com uma insígnia regional, em sessão solene da Assembleia Legislativa Regional, realizada, para lembrar tempos antigos, na sede da Sociedade Amor da Pátria, mas recebi um agradecimento de grande frieza. E sobre esta fase não tenho mais nada a contar.
Mas quanto à primeira fase do meu relacionamento com António Borges Coutinho, isso sim, tenho muitas coisas para recordar e valorizar devidamente, pelo muito que significaram na minha vida e na minha formação política.
Foi Álvaro Miranda quem me apresentou a António Borges Coutinho, levando-me a casa dele, pouco tempo antes da sua partida para Inglaterra, onde se foi juntar aos Pais, no exílio provocado pela oposição de Lúcio Miranda à linha política do Governo do ditador Salazar acerca do chamado Estado Português da Índia e mais em geral das colónias portuguesas. Lembro-me bem de o termos surpreendido, juntamente com a Mulher, Maria da Conceição, copiando no aparelho de “stencil” a carta do Bispo do Porto, Dom António Ferreira Gomes a Salazar, no rescaldo da campanha para as eleições para Presidente da República, às quais concorrera Humberto Delgado, que valeu ao Bispo um exílio em Espanha até á posse de Marcelo Caetano no cargo de Presidente do Conselho de Ministros.
António Borges Coutinho emprestou-me muitos livros, que na altura eu era um leitor entusiasta e devorador de tudo o que caía nas mãos. Foi assim que tomei contacto com os “Ensaios”, de António Sérgio e os “Cadernos”, de Agostinho da Silva, dois dos autores preferidos do meu então Mentor. Também li, em inglês, várias peças de Bernard Shaw, das quais recordo “Major Barbara” e “Man and Superman”, uma das duas com um patético final expresso na tirada de um personagem central: “Words, words, words”… Li ainda, também em inglês, alguns dos “Diálogos”, de Platão, nomeadamente o “República”, mas nem tudo consegui captar, naturalmente.
Filho segundo do derradeiro Marquês da Praia, título outorgado, creio eu, para retribuir a espectacular recepção oferecida quando da Visita Régia no Jardim do Tanque, nas Furnas, pelo então Conde da Praia, proprietário do parque hoje conhecido como Terra Nostra, e que está representada numa das pinturas a ela alusivas existentes no Palácio de Sant’Ana, jamais o ouvi referir quaisquer assuntos nobiliárquicos e estou convencido mesmo que nem se interessava pelo tema. Preocupavam-no sim as condições dos rendeiros cultivadores directos das extensas propriedades familiares, os quais vinham de chapéu na mão pagar as suas rendas pontualmente ao escritório existente no rés do chão do casarão em que habitava. Vi-o sempre muito empenhado nas arroteias que a Casa da Praia estava levando a cabo na Achada das Furnas, onde se instalou depois a Altiprado.
A grande Música Clássica era um dos temas favoritos das nossas conversas. António Borges Coutinho era um melómano a sério e tinha mesmo uma colecção de discos muito apreciável para aquele tempo. Então aprendi a gostar mesmo de Beethoven e das suas sinfonias. Se a memória me não falha, existia na colecção de discos um album com uma gravação da Nona Sinfonia, sob a batuta de Arturo Toscanini, que António Borges Coutinho me emprestou para ilustrar a minha conferência sobre o grande compositor, feita na Biblioteca do Liceu no dia do aniversário natalício do mesmo, por iniciativa do Núcleo de Arte Antero de Quental; o gira-discos então utilizado foi-me emprestado por um outro conhecido, com quem então privava, Ernesto Melo Antunes, nem mais nem menos.
Sobre esta palestra recordo um episódio bem significativo do tipo de relações então existentes entre mim e António Borges Coutinho. Levei-lhe o texto que escrevera para o submeter à sua apreciação. Achou-o bem, mas acrescentou: “E agora você tem de o meter na cabeça e dizê-lo sem olhar para o texto escrito!” Assim fiz e foi um verdadeiro sucesso! Na assistência, discretamente sentado numa cadeira lá estava ele a comprovar o cumprimento da sua sugestão. Quem tiver paciência, ainda pode ir procurar numa das edições do então semanário “Açoriano Oriental”, próximas da data do evento, 16 de Dezembro de 1959, o pequeno artigo, assinado com as iniciais ABC, no qual se fazia referência à minha adesão pessoal à personalidade do grande compositor alemão.
Não me lembro de ao longo destes anos termos falado de temas de religião ou de política com letra pequena; falámos sim de Política com P grande, de Liberdade, de Democracia, que eram as grandes preocupações e os temas permanentes do grande resistente ao regime autoritário e ditatorial de Salazar, que foi António Borges Coutinho, mantendo aceso um foco da Oposição Democrática em Ponta Delgada.
Quando fui estudar para a Universidade em Lisboa, visitei o casal Borges Coutinho no apartamento que então tinham, na Rua Azedo Gneco, no Bairro de Campo de Ourique. Fiquei surpreendido e penalizado quando soube da sua prisão às ordens da PIDE, que para tal tinha poderes legais, os quais mais tarde vim a combater como Deputado à Assembleia Nacional. Soube que Maria da Conceição tinha atravessado a nossa cidade atrás de uma carroça de mão, levando ao marido preso na Boa Nova coisas essenciais ao seu bem-estar, em clamorosa falta no Estabelecimento Prisional.
Na monumental biografia de Ernesto Melo Antunes, escrita por Maria Inácia Rezola, aparece uma citação de uma conversa com António Borges Coutinho, na qual é feita referência ao facto de após ter saído da prisão termos passeado juntos na Avenida Marginal, o que registou positivamente. Seria decerto durante as férias grandes que passei em São Miguel, no fim do primeiro ano da Faculdade. Depois disso, por razões várias, as minhas estadias na nossa Ilha passaram a ser mais curtas e também por isso, ou talvez por entretanto se ter ele fixado em Lisboa, deixei de ver António Borges Coutinho.
Quanto a Álvaro Miranda, mantivemos correspondência durante muitos anos, discutindo os filmes que íamos vendo e os livros que líamos. Passado tanto tempo, foi um gosto revê-lo no Colóquio levado a efeito na Biblioteca Pública, onde estão também depositados os livros e o restante espólio do homenageado, e poder dar testemunho público do muito que lhe fiquei devendo por me ter apresentado a António Borges Coutinho, numa tarde do começo do último Verão que passamos juntos na nossa bela Ilha de São Miguel.
João Bosco Mota Amaral*
*(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo
Ortográfico)