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Concerto em Dó menor

Entrou devagar, quase sem fazer um som, como se não merecesse estar ali. Sentou-se, a mala pousada no colo, os dedos a tamborilarem. A postura tensa, o rosto cansado, os olhos encovados, pregados ao chão e o peso do mundo nos ombros.
—Não sei o que dizer, doutor. — A voz baixa, hesitante.— Sinto-mealiviada. E esse alívio destrói-me por dentro.
Silêncio. Os olhos no chão, sempre. A culpa a apertar-lhe o peito. Quando falou de novo, a voz vinha de um lugar remoto.
— Vivemos numa vila pequena, na costa norte da ilha. Sempre fomos pobres, mas com o suficiente para seguirem frente. O meu marido, teimoso mas honesto, era quem dava o ritmo aos nossos dias. Eu que cuidava da casa, dos miúdos, quando ele ia para o mar. Não éramos felizes, mas também não éramos infelizes. Depois, o veleiro do italiano…
Parou, ajeitando a mala no colo, como se precisasse de estabilidade para o que vinha a seguir.
— Foi o mar que o trouxe. Primeiro, uns rumores apenas. Depois, os fardos junto às rochas. Não sabia sequer o que aquilo era. Aos poucos, um frenesim na vida da vila. — Respirou fundo.— As grandes mudanças vieram devagar. Algumas caras conhecidas desapareceram. Depois, os carros novos, as roupas caras, as obras nas casas velhas. Vimos tudo isso, não nos deixámos levar. O meu marido insistia: “Isto não é para nós.” E assim foi.
Os dedos apertavam com força a mala.
—O mar não dava, as contas começaram a pesar. Ele calou-se, afastou-se. Começou a beber. A pobreza não destrói só as paredes da casa, doutor.
Os olhos dela procuraram os meus, antes de desviarem de novo.
— Foi nessa altura que a Sofia começou a desaparecer. Primeiro, só umas horas, depois das aulas. Depois, dias… noites… Não dormia em casa. Voltava diferente. Sempre diferente. Prometia não repetir, chorava, falhava. E nós… Tentámos. Tudo. Conversas, gritos, gastámos o pouco que tínhamos. Nada resultava. Nada. Era como tentar pararas ondas com as mãos.
A voz dela tornou-se mais baixa.
— Quando a encontraram, na cidade… caída no chão duma casa de banho pública. Overdose. Disseram que perdeu um bebé. A Sofia não nos disse que estava grávida. Talvez nem soubesse.
Fez-se um silêncio pesado.
— O meu marido morreu pouco depois. — Prosseguiu, com a voz mais dura. — “Do coração”, disseram-me os seus colegas. Mas foi decerto do desgosto. Aguentou-se enquanto pôde. A Sofia, ai, a nossa Sofia, sempre a mais frágil, “a menina do seu papá”.
Os olhos prenderam-se aos meus, com uma intensidade que me tocava a alma.
— Não sei o que me custa mais… Se as perdas, se sentir o alívio… Porque acabou. Porque não há mais noites sem saber da Sofia. Isso faz de mim uma mãe e uma mulher horrível?
Deixei o silêncio preencher o espaço entre nós. Voltou a falar, mais devagar agora.
— Às vezes, penso que a vida é como uma peça que aprendi e que tocava, em miúda, na Filarmónica. Começava simples, depois ficava densa, difícil. Dura. Quase insuportável. Até que…
Olhou pela janela, como se procurasse algo lá fora.
— Mas será que…? Estou tão confusa, doutor. Sinto que o tom mudou. Não é alegre. Nunca foi. Talvez nunca venha a sê-lo. Mas, há algo diferente. Ainda estou aqui, não estou? Isso deve querer dizer alguma coisa.
Aquelas questões ecoavam em mim. Ousei devolver:
— Sabe, algumas das mais bonitas peças nunca foram concluídas. É também o espaço que deixam, esse mar imenso de possibilidades, que lhes acrescenta beleza.
Levantou-se devagar. . Não disse nada. O olhar que me lançou trazia, pela primeira vez, um brilho diferente. Saiu. Quando a porta se fechou, fiquei por momentos a ouvir aquele movimento inacabado. Inacabado, sim. Mas não sem o potencial de se harmonizar, de se encontrar. De novos caminhos.

João Mendes Coelho*

  • Médico psiquiatra e adictologista
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