Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo… e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.»
(José Saramago, in Cadernos de Lanzarote – Diário III – pag. 148)
Este pensamento de José Saramago aplica-se que nem uma luva à conferência de imprensa com que o sr. Presidente da Câmara de Comércio e Indústria de Angra do Heroísmo, Marcos Couto, nos presenteou a todos no passado dia 13.
SATA Internacional, SATA Handling, SATA Air Açores, Attlânticoline, Portos e Matadouros dos Açores e tudo o mais que não seja saúde e educação (áreas onde aliás, mesmo sem conferências de imprensa, já as privatizações tinham dado antes alguns passos em frente), é para privatizar, sem apelo nem agravo.
Copiando as direitas que têm arrebitado por esse mundo (ocidental) fora, Marcos Couto resolveu arrebitar também esacudiro pó aos alfarrábios económicos liberalistas mais primários, golfando uma lista interminável de ações que apelidou de “plano de privatização de empresas públicas robusto”, e que, segundo ele, garantiriam (vejam só) a sustentabilidade financeira dos Açores.
Segundo ele, não cabe ao governo, à Região, às instituições autonómicas e democráticas intervir em lado nenhum que mexa com a economia (para que servirão então os governos, o poder político e a democracia?) e, pelo contrário, devem ser as leis do mercado e os empresários privados (com os dinheiros públicos, claro) a regularem, as condições de vida, o trabalho, os rendimentos, a literacia e a saúde dos cidadãos, a cultura, a ciência, a mobilidade dos ilhéus, o desenvolvimento regional, etc., etc.,etc.
Isto tudo, segundo a voz do alto império que assim falou (saudoso António Aleixo), não tanto afinal por causa da sustentabilidade financeira da Região, mas antes porque “os governos se servem das empresas públicas para arranjar empregos” e, acrescento eu, desviam assim preciosos fundos públicos que deveriam preferencialmente cair direitinhos no saco sem fundo dos grandes(?) empreendedores regionais…
99% das empresas açorianas são micro ou pequenas empresas, responsáveis por 50% do volume de negócios e necessitam com alguma regularidade de apoios públicos, crédito barato, acesso fácil aos fundos comunitários, baixas no preço dos combustíveis e energia e outras medidas que pouco passam pela baixa de IRC ou pelas privatizações para se manterem no ativo e a produzir. É a estas que Marcos Couto deveria dar maior atenção em lugar de procurar mostrar-se mais papista que o papa na defesa daquilo que convém em especial aos maiores grupos e empresas da Região. Parece ter-se já esquecido das razões (justas, aliás) que se levantaram à volta das “agendas mobilizadoras” e de quem com elas iria primeiro beneficiar…
Nota de rodapé. Relatório semanal de Gaza (12-18 novembro) –Pelo menos 229 palestinianos mortos, fora os desaparecidos, em residências, escolas e refúgios de deslocados, atacados de noite e de dia, ora no norte, ora no centro, ora no sul do território. Enquanto a ONU declarava esta semana que a fome está a ser utilizada por Israel como arma de guerra, e que o que ocorre em Gaza corresponde às características de um genocídio, Blinken declarava em simultâneo que os EUA não iriam limitar as transferências de armas para Israel.
Mário Abrantes