“Foram Teófilo Braga e o seu Governo Provisório que determinaram a extinção – estranhamente apressada – do Tribunal da Relação dos Açores, que jamais voltou a existir, ficando os recursos processuais relativamente às decisões dos Tribunais de Primeira Instância destas ilhas na alçada do Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo acontecendo quanto à Madeira.”
Já muito foi dito, escrito e feito – e muito bem! – em homenagem ao eminente intelectual e político Teófilo Braga, a propósito do centenário da sua morte. Mas há um aspecto na actuação pública de Teófilo Braga, como presidente do Governo Provisório resultante da Revolução Republicana de 5 de Outubro de 1910, que suscita em mim dúvida e mesmo interrogação. Foram Teófilo Braga e o seu Governo Provisório que determinaram a extinção – estranhamente apressada – do Tribunal da Relação dos Açores, que jamais voltou a existir, ficando os recursos processuais relativamente às decisões dos Tribunais de Primeira Instância destas ilhas na alçada do Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo acontecendo quanto à Madeira.
Recordo, muito sucintamente, que Joaquim Teófilo Fernandes Braga nasceu em Ponta Delgada a 24 de Fevereiro de 1843 e faleceu em Lisboa a 28 de Janeiro de 1924. Assinava Theophilo Braga. Teve uma vida muito preenchida e pródiga. Foi poeta, filólogo, sociólogo, filósofo, ensaísta, professor universitário e político. Estreou-se na literatura em 1859. Bacharel, licenciado e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, fixou-se em Lisboa em 1872, onde lecionou Literatura no Curso Superior de Letras (actual Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). Da sua vasta e rica carreira literária contam-se obras de história literária, etnografia, poesia, ficção e filosofia, tendo sido ele o introdutor do Positivismo em Portugal. O filósofo, historiador e escritor António Quadros, de quadrante ideológico diferente, dizia criticamente que ele foi o “pai” do Positivismo no nosso país. Depois de ter presidido ao Governo Provisório da República Portuguesa, a carreira política de Teófilo Braga terminou após exercer fugazmente o cargo de Presidente da República, em substituição de Manuel de Arriaga, entre 29 de Maio e 5 de Outubro de 1915.
O Governo Provisório instituído após a proclamação da República Portuguesa em 5 de Outubro de 1910 ficou encarregado de dirigir superiormente o país até ser aprovada uma nova lei fundamental pelo parlamento. O Governo Provisório manteve-se em funções até à aprovação da nova Constituição, em 24 de Agosto de 1911, dando por encerrada a sua missão e auto-dissolvendo-se a 4 de Setembro seguinte, quando deu lugar ao Primeiro Governo Constitucional, chefiado por João Chagas.
O ministro da Justiça do Governo Provisório foi Afonso Costa, que viria mais tarde a ser primeiro-ministro ou presidente do ministério, como também se dizia. Como ministro da Justiça, ficou também vinculado diretamente ao encerramento do Tribunal da Relação dos Açores.
O país encontrava-se numa grande instabilidade com a mudança de regime, era necessário rapidamente criar e consolidar novas instituições, aprovar muitas novas leis e resolver muitos problemas emergentes. Apesar disso tudo, como se fosse um problema que colocasse entraves à consolidação do regime republicano, uma das primeiras decisões do Governo Provisório foi a rápida extinção – imaginem! – do Tribunal da Relação dos Açores. Houve nesse aspecto uma pressa difícil de compreender, pelo menos para mim. Fico a pensar que Teófilo Braga tinha já qualquer coisa contra o Tribunal da Relação dos Açores. De resto, penso não ser exagerado dizer que ele não teve uma boa relação com os Açores, pois saiu do arquipélago aos 17 anos de idade para ir estudar em Coimbra e jamais voltou, mesmo que apenas para visitar a terra natal.
O Tribunal da Relação dos Açores tinha sido criado pelo mesmo decreto que reformulou a organização judiciária do país e procedeu a nova divisão judicial do território em 1832. O arquipélago dos Açores foi constituído em Círculo Judicial, sendo a cidade de Ponta Delgada o centro desse Círculo, que se dividia em três Comarcas: a primeira integrava as ilhas de São Miguel e de Santa Maria, a segunda as ilhas Terceira, Graciosa e São Jorge, com sede na cidade de Angra do Heroísmo, e a terceira as ilhas do Faial, Pico, Flores e Corvo, com sede na cidade da Horta.
Na actual divisão judiciária, os Açores estão constituídos numa única Comarca, precisamente a Comarca dos Açores, com sede em Ponta Delgada. Integram a Comarca dos Açores todos os 19 municípios desta Região Autónoma, mas nem todos possuem Tribunal ou Juízo. A Comarca dos Açores integra a área de jurisdição do Tribunal da Relação de Lisboa, cuja área de competência abrange cinco Comarcas: Lisboa, Lisboa Norte, Lisboa Oeste, Açores e Madeira.
O Governo Provisório, apesar de Provisório e numa estranha pressa, repito, por decreto de 24 de Outubro de 1910, determinou que o Tribunal da Relação dos Açores fosse extinto a partir de 30 de Novembro desse ano e que os processos, arquivos e mobiliário fossem enviados o mais rápido possível para o Tribunal da Relação de Lisboa. Foi dito e feito, sem discussão, nem oposição: teve que ser. O secretário ou guarda-mor do Tribunal da Relação dos Açores, Duarte de Andrade Albuquerque de Bettencourt, jurista de formação, político do primeiro movimento autonomista açoriano e conde de Albuquerque, nunca renegou as suas convicções monárquicas, mas cumpriu as ordens recebidas das autoridades governamentais republicanas. Sabe-se lá com que sacrifício! Os juízes-desembargadores do Tribunal da Relação dos Açores foram distribuídos pelos Tribunais da Relação de Lisboa e do Porto.
O Tribunal da Relação dos Açores foi, pois, um Tribunal de Segunda Instância criado por decreto de 16 de Maio de 1832 e extinto por decreto de 24 de Outubro de 1910. Começou a funcionar na prática a 3 de Julho de 1833, data em que tomou posse o seu primeiro presidente, o juiz-desembargador José Leandro da Silva e Sousa. O Tribunal da Relação dos Açores funcionou em Ponta Delgada, no Palácio da Conceição, na ala anexa à Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Parece que algum espaço das instalações da própria Igreja do Carmo foi aproveitado para o serviço do Tribunal da Relação. Penso não existir no local qualquer placa indicativa, mas sugiro que seja colocada com a referência “Aqui funcionou o Tribunal da Relação dos Açores entre 1832 e 1910”. É uma referência histórica que merece ser assinalada.
Como referi, a vasta documentação do Tribunal da Relação dos Açores foi remetida para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde se manteve até 1995. Tanto quanto é do meu conhecimento, em Agosto desse ano foi incorporada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo juntamente com documentação do Tribunal da Relação de Lisboa. Penso que a documentação do extinto Tribunal da Relação dos Açores deveria ser transferida para a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, para que mais facilmente possa ser consultada por investigadores e historiadores locais. Como se compreende, está ali um riquíssimo manancial de informação que ultrapassa a esfera judicial.
Concluindo: com todo o respeito e toda a consideração que me merece Teófilo Braga e a sua multifacetada obra, que estudei em parte, sendo sem dúvida uma personalidade maior do nosso país, não deixo de ficar surpreendido com a decisão apressada de encerrar o Tribunal da Relação dos Açores, num momento em que havia tanto para fazer de mais urgente e relevante para a consolidação do regime republicano.
Desconheço os motivos, se é que objetivamente os houve, para encerrar o Tribunal da Relação dos Açores. A pressa foi tanta que suscita dúvidas e interrogações. Não sou especialista em Direito, mas não vejo razão para os Açores não possuírem um Tribunal da Relação.
Tomás Quental Mota Vieira