O pai distribuiu o que tinha. Um pedaço de terra, um envelope com dinheiro, um beijo e um abraço a cada um dos três filhos. Armando, o primogénito, recebeu a maior parcela, junto ao mar, em Ponta Garça. Nuno ficou com uma encosta soalheira, na Caloura, onde as vinhas resistiam ao vento, graças aos muros altos, de outros tempos. Alberto, o mais novo, herdou uma grande lavoura no vale das Furnas. “Façam render”, disse-lhes.
O Armando viu potencial no turismo. Fez uns empréstimos consideráveis, construiu casas de arquitetura moderna, com vista para o mar. Durante uns anos, as coisas não lhe correram mal. Os turistas chegavam como formigas, de máquinas fotográficas e dólares em riste. Depois, a pandemia, as guerras, a falta de mão de obra barata e os resorts… As dívidas a crescerem como ervas daninhas. As casas vazias. As contas também. Os bancos, indiferentes, lambuzaram-se como que sobrou.
O Alberto não fez caso da fatia que lhe coube, deixou tudo como estava. A terra ficou esquecida, as pedras acumularam musgo. “Para quê? A terra já não dá! Rendeu uns subsidiozitos, mais nada.”, dizia, entre copos de um whisky velho, estupidamente caro. Vendeu, de impulso, aterra, os animais e as máquinas a um “calafão endinheirado”, quando o cinto começou a apertar. Em todo este tempo, o fundo do copo e o depósito do Porsche foram invariavelmente as únicas sementes que nunca se esqueceu de regar.
Já o Nuno trabalhou. Trabalhou muito. Primeiro com as mãos, depois com a cabeça. Cultivou as vinhas, plantou árvores de fruto, estabeleceu contactos comerciais, contratou os melhores funcionários que encontrou, formou-os, inspirou-os com a sua visão e confiou neles. Cultivou-se também a si. Aprendeu gestão agrícola, botânica e enologia e até liderança e marketing. Criou uma marca, depois outra e outra. Vendeu compotas, inovou com flores e com um, agora preciosíssimo, vinho licoroso. “Com Amor, dos Açores” era o slogan de todos os seus negócios e produtos. Quando o Armando ficou sem nada, foi o Nuno que o acolheu e lhe arranjou trabalho no armazém, na mesma hora. Sem perguntas ou condições.
No dia do funeral do pai, os três juntaram-se à mãe na casa da família, ao fim da tarde. A casa parecia-lhes agora demasiado grande e mais vazia do que nunca. Cheirava a pão fresco, como sempre, e a terra molhada. Depois do jantar, sentaram-se na varanda, como o pai gostava de fazer, enquanto a chuva caía lentamente. O Armando olhava o horizonte escuro, triste. O Alberto, sempre de copo e cigarro na mão, contava histórias de antepassados que não conheceu, “O glorioso ciclo da laranja”, como quem recusa viver o presente, preso a um passado que não lhe pertence. O Nuno, calado. Sempre calado. Parecia ouvir de novo as palavras do pai, “Façam render”, e imaginava o que lhes diria agora se ali estivesse.
A mãe chegou, saída da cozinha, de olhos cansados, limpando as mãos a um pano. Encostou-se ao batente da porta e deixou-se estar, sem dizer nada, enquanto olhava o mar, os filhos e recordava com saudade os serões que ali passara com o marido.
“Todos tivemos o mesmo tempo”, disse o Armando, quebrando o silêncio. “Mas nem todos fizemos o mesmo com ele.”
Foi então que a mãe falou, com a sua voz doce e segura e que, em tantos anos, nunca precisou de levantar para ser ouvida. “O pai costumava dizer que a terra nunca nos falha. E talvez tivesse mesmo razão. Mas o tempo é implacável, rapazes. Ou justo, talvez. Tudo depende de como vivemos e contamos as nossas histórias.”
João Mendes Coelho*
- Médico psiquiatra e adictologista